sexta-feira, 10 de junho de 2011

LEMBRAI-VOS DAS MARAVILHAS QUE O SENHOR FEZ


Discurso do Prof. Luciano R. Peterlevitz na solenidade de Colação de Grau, realizada em 19 de março de 2011 na Primeira Igreja Batista de Campinas.


Ilustríssimo Diretor Interino, Pr Marcílio Gomes Teixeira,

Ilustríssimo Coordenador Acadêmico, Pr Antonio Lazarini Neto,

Ilustríssimo Patrono, Pr Paulo Vicente Ferreira das Neves,

Estimados formandas e formandos,

Caros irmãos e irmãs,


Uma boa noite a todos. Peço licença para, neste momento, dirigir-me aos formandos.

Aceitei com grande alegria o convide para lhes dirigir a palavra nesta noite. O motivo é simples: considero que seja um reconhecimento de que aulas de hebraico talvez não foram tão tediantes como normalmente são! Agradeço ao convite.

Este é um dia de festa e regozijo. É um dia de gratidão a Deus pelo cuidado e provisão dispensados ao longo de todos esses anos de curso teológico. É um momento oportuno para unir nossas vozes à voz do salmista: “Lembrai-vos das maravilhas que ele tem feito” (Salmo 105.5). Mas também é um momento para afirmar que o término do curso teológico é apenas o primeiro passo na trilha da vontade de Deus. Ao encerrar este momento festivo, vocês retornarão para seus ministérios, para suas igrejas. Há uma longa jornada pela frente.

Assim, como unir a gratidão pelas bênçãos num passado recente com a expectativa de um futuro que agora se inicia? Todos vocês certamente aprenderam muito durante esses anos de seminário. Mas talvez vocês estejam se perguntado: e agora, o que fazer?

Para responder tais questões, convido-os a olhar para o salmo já mencionado, o salmo 105. Leiamos os primeiros seis versos desse salmo:

1 Rendei graças ao Senhor, invocai o seu nome,

fazei conhecidos, entre os povos, os seus feitos.

2 Cantai-lhe, cantai-lhe salmos;

narrai todas as suas maravilhas.

3 Gloriai-vos no seu santo nome;

alegre-se o coração dos que buscam o Senhor.

4 Buscai o Senhor e o seu poder;

buscai perpetuamente a sua presença.

5 Lembrai-vos das maravilhas que fez,

dos seus prodígios e dos juízos de seus lábios,

6 vós, descendentes de Abraão, seu servo,

vós, filhos de Jacó, seus escolhidos.

Acredito que os salmistas perfazem um modelo paradigmático para pastores, missionários, teólogos e pregadores. Aliás, o mais famoso dos salmistas foi Davi, de quem Deus diz: “Encontrei o meu servo Davi” (Salmo 89.20). Portanto, podemos olhar para os salmistas como modelos de ministros do Evangelho.

De todos os livros da Bíblia, certamente o livro dos Salmos é o mais conhecido. Pois o livro é uma das mais inspiradoras fontes de meditação e devoção do judaísmo e do cristianismo. Nos salmos ouvimos o eco de desespero de um sofredor, mas também ouvimos a certeza da vitória que vem do Senhor. Os salmistas dirigiam suas orações a Deus, sem o receio de expressarem dúvidas e angústias, mas eles também levantavam suas vozes para reconhecer os atos maravilhosos do Senhor. De fato, os Salmos são orações. Alguém já disse corretamente que, enquanto os sábios e profetas falavam de Deus, os salmistas normalmente falavam a Deus. Nos livros proféticos, Deus falava com o homem. Nos Salmos, o homem fala com Deus.

Para os salmistas, cada momento era momento de buscar ao Senhor, era momento de orar, era momento de clamar, era momento para adorar. É por isso que os hebreus chamaram o livro de Sefer Tehilim, “Livro dos Louvores”, ou simplesmente tehilim, “louvores”. Salmos são louvores. É curioso que todos os 150 salmos sejam chamados de ‘louvores’. Os salmos de gratidão, como esse 105, é um louvor. Mas as súplicas, escritas em momentos sombrios, também são louvores. O salmo 3, por exemplo, foi escrito por Davi quando fugia do seu filho Absalão. Um pai com o coração partido! Um pai tendo sua vida ameaçada por seu próprio filho. Haverá dor maior? Mas, mesmo o salmo 3 foi considerado um louvor a Deus! Assim, todos os salmos, desde o mais antigo (o 90, salmo de Moisés) até os mais recentes (da época de Esdras) são chamados de louvores.

Sim, caros formandos, cada momento é um momento para louvar ao Senhor. Hoje é um dia festivo. É uma data oportuna para louvar ao Senhor. Mas saibam: existem vales sombrios pelos quais vocês terão de passar. Pois existem muitos espinhos no caminho do ministério pastoral. Mas lembrem-se: cada momento é momento para louvar. Transforme cada situação em oportunidade para louvar a Deus, e o ministério será muito mais agradável!

Os salmos são orações. Os salmos são louvores. Mas os salmos também são teologia. Martinho Lutero afirmava que o Saltério é uma pequena Bíblia, pois contém tudo o que é afirmado no restante das Escrituras. De fato, encontramos todo o cerne da teologia bíblica nos salmos. O Saltério descreve a criação e celebra o Criador: “Os céus proclamam a glória de Deus, o firmamento anuncia as obras das suas mãos” (Salmo 19.1). Dos salmos, emana a teologia dos atribudos de Deus: “de eternidade em eternidade, tu és Deus”, diz o Salmo 90.2b. O Salmo 139 alude aos três atributos de Deus: sua onipresença, sua onisciência e sua onipotência. De fato, os salmos retratam perfeitamente a Pessoa de Deus, em especial o Deus que liberta os pobres e oprimidos: “O Senhor executa a justiça e defende todos os oprimidos” (Salmo 103.6). Os salmos aludem ao pecado: “Eu nasci em iniquidade”, dizia Davi (Salmo 51.5). Mas também celebram o perdão dos pecados: “Bem-aventurado aquele cuja transgressão é perdoada e cujo pecado é coberto”, alegra-se Davi, no salmo 32. Há salmos messiânicos: “Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste?” (Salmo 22.1). Os salmos referem-se à consumação final do Reino de Deus, quando a paz e a justiça finalmente serão implantadas: “O Senhor reinará para sempre”, profetiza o Salmo 146.10.

De fato, os salmos constituem-se um manual de teologia. Mas, é bom que se frise: Salmos não é um manual de conceitos teológicos. O livro é um manual de orações. O livro nos inspira a confiar em Deus em todos os momentos. O Saltério nos obriga a entendermos a relevância dos atributos de Deus em nosso cotidiano. Até porque não existe teologia desassociada de prática pastoral. De fato, os salmistas são modelos apropriados de teólogos!

Portanto, os salmistas falavam de Deus falando a Deus. Anunciam Deus e os feitos de Deus, louvando ao Deus dos feitos! Não ousavam pregar sem antes louvar. Há de se notar, ainda, que os Salmos surgiram no contexto cúltico do antigo Israel. Os salmos eram cânticos! Eram poesia recitada por aqueles que peregrinavam a um santuário; os salmos eram entoados em momentos festivos de adoração, ou mesmo em momentos de ameaça nacional. Os salmos eram recitados numa adoração comunitária. Portanto, os teólogos dos salmos estão inseridos numa comunidade adoradora, e eles mesmos conduzem e lideram essa comunidade adoradora.

Para entendermos um pouco mais o surgimento dos Salmos no contexto da adoração, e como isso se aplica à dinâmica pastoral, precisamos pensar em alguns verbos hebraicos (olha o hebraico de novo!) fundamentais para o entendimento da literatura dos Salmos. Para isso, voltemos ao Salmo 105.1-6. Focalizamos o verso 5: “Lembrai-vos das maravilhas que ele tem feito, dos seus prodígios e dos juízos que proferiu.”

Chamo-lhes a atenção para o verbo zakar, que tem um significado bastante rico na Bíblia Hebraica: relembrar, recordar, mencionar, recitar, proclamar, comemorar. Ele aparece no verso 5: “Lembrem-se das maravilhas que ele fez”. Mas, porque se lembrar das obras que Deus fez no passado? Ora, a memória é uma forma de reviver o passado para se viver no presente. A maioria dos Salmos celebra os atos salvíficos de Deus na história passada de Israel e, ao mesmo tempo, renova as esperanças no presente: Deus intervirá de igual modo no presente, na vida dos adoradores. Por isso, eis uma expressão muito comum nos Salmos: “Vinde, contemplai as obras do Senhor” (Sl 46.8, cf. 48.9; 66.5; 69.32-33; 90.17; 98.3; 107.42). A obra do Senhor no passado continua no presente, na vida daquele que canta! Os Salmos devem ser lidos nessa perspectiva.

Assim, é notável que a maioria das súplicas termine com uma expressão de louvor a Deus. Por exemplo, Davi, no salmo 7, quando afrontado pelos inimigos, buscava o Senhor, dizendo: “O Senhor é o meu escuto” (verso 10), e no final da súplica afirmava: “Eu louvarei o Senhor...cantarei louvores ao nome do Senhor, o Altíssimo” (verso 17). No salmo 5, Davi gemia de dor: “atende aos meus gemidos”, diz ele no verso 1. Mas no final afirma: “Mas alegrem-se todos os que confiam em ti! Regozijem-se para sempre, porque tu os defendes!” (verso 11). Portanto, para o suplicante, Deus já atendeu o seu clamor e já interveio na situação dele, muito antes dele sair da situação que lhe ameaça.

Embora no momento da súplica o fiel enfrente angústia e medo, ele tem a certeza de que sua oração será atendida, por isso louva ao Senhor, agradecendo-O pelo livramento que certamente virá. Sobre isso, Claus Westermann afirma: “Nenhum milagre foi feito durante a oração do salmista. Mas deu-se outra coisa: Deus ouviu, Deus se inclinou, Deus teve compaixão. O elemento decisivo se realizou. O que ainda é esperado, a mudança da situação dolorosa, deve realizar-se.”

O verbo zakar também deve ser entendido nessa perspectiva. O lembrar das obras de Deus no passado significa atualizar a ação de Deus no presente. Isso é muito evidente nos Salmos, em especial no salmo 105. Aliás, é imprescindível lermos esse salmo junto com o salmo 104. Estes dois salmos, juntos, atualizam a ação de Deus na vida do salmista e de sua comunidade cúltica.

O salmo 104 celebra o Deus Criador. Os versos 1-4 afirmam que Deus criou os céus: “...estendes os céus como uma cortina”. Nos versos 5-9, Deus criou a terra: “Lançaste os fundamentos da terra...”. Nos versos 10-18, lemos que Deus criou a vida na terra: “...a terra se farda do fruto das tuas obras”. Os versos 19-23 enfatizam a criação da lua e do sol, e os versos 24-30 aludem à criação do mar. Mas a ênfase do salmo 104 não é a criação em si, mas o Criador, em especial o sustendo do Criador às suas criaturas. É por isso que o verso 27 afirma: “Todos esperam de ti que lhes dê o sustento a seu tempo”, e, no verso 30, o fôlego de Deus mantém a vida sobre a terra. Louva-se o Criador como sustentador da vida!

E o Salmo 105? O Salmo 105 é uma continuação do Salmo 104. À semelhança do Pentateuco, esses salmos, juntos, relacionam a criação à história da salvação. Os versos 7-25 afirmam que Deus fez uma aliança com os patriarcas, dizendo, no verso 7: “Ele se lembra para sempre da sua aliança, da palavra que ordenou para mil gerações” (olhem o verbo ‘lembrar’!). Os versos 26-38 descrevem a libertação do Egito. E, nos versos 39-41, lê-se que Deus cuidou de Israel no deserto: “Partiu a rocha, e dela brotaram águas, que correram como um rio pelos lugares áridos”, diz o verso 41. Entretanto, a surpresa desse salmo está no final. O verso 42 arremessa-nos para o verso 8: “Por que se lembrou da sua santa Palavra e de Abraão, seu servo.”. Mas a beleza do salmo está no finalzinho do ver 45: “Aleluia”. Aleluia: louvai ao Senhor. Sim, o salmista convida a comunidade cúltica para louvar ao Senhor, porque Deus, que é o Deus Criador, que é o Deus Libertador, que interveio no passado de Israel, certamente intervirá na vida daqueles que O louvam!

Criação (salmo 104) e redenção (salmo 105). Esses temas relacionam-se. Em Isaías 40 – 55 esses temas também estão magistralmente correlacionados. É que estes dois temas – criação e redenção – eram recitados no antigo Israel. Na récita, a criação é re-criada, e a redenção sempre renovada. Por isso a páscoa era um memorial: Este dia vos será por memorial (Êxodo 12.14). O Deus Libertador sempre intervirá quando um cativeiro ameaçar o seu povo. Uma nova páscoa surge a cada dia. Uma nova criação, todas as manhãs.

O modo como os salmos atualizam a ação de Deus na vida daquele que clama é claramente observado na morte de Jesus. Na cruz, o Senhor Jesus louvou ao Senhor, citando o Salmo 22. O Evangelho de Mateus Mt 27.46 cita apenas o primeiro verso do salmo 22. Mas os judeus costumavam recitar os salmos inteiros. E, como afirmam bons especialistas, Jesus citou todo o salmo 22. Pois este salmo fala de esperança: “Os humildes comerão e ficarão satisfeitos; e os que o buscam louvarão o Senhor. Que o vosso coração viva eternamente!”, diz o verso 26. A intervenção de Deus na vida de Davi foi renovada na vida de Jesus!

Então, de acordo com os Salmos, louvar na comunidade é atualizar a ação de Deus em nossa história presente. É possível exercitar uma leitura desta perspectiva a partir do salmo 105, em companhia com o salmo 104.

Observando ainda o salmo 105, identificamos outros verbos, que fazem companhia ao verbo zakar. Refiro-me ao verbo do verso 1, “tornar conhecido” (yada’), no sentido de “divulgar”: Rendei graças ao Senhor, invocai o seu nome, fazei conhecidos, entre os povos. No verso 2 lê-se os verbos “cantar” e “narrar”: Cantai-lhe, cantai-lhe salmos; narrai todas as suas maravilhas. Em outros salmos, há um outro verbo muito importante, similar a esses do salmo 105.1-2. Trata-se do verbo safar, “proclamar”, “contar”:

Salmo 73.28:

28 Quanto a mim, bom é estar junto a Deus;

no Senhor Deus ponho o meu refúgio,

para proclamar (safar) todos os seus feitos.

Salmo 78.3-4:

3 O que ouvimos e aprendemos,

o que nos contaram (safar) nossos pais,

4 não o encobriremos a seus filhos;

contaremos (safar)à vindoura geração

os louvores do Senhor, e o seu poder,

e as maravilhas que fez.

Pode-se afirmar, portanto, que os salmos dialogam memória e anúncio. Os salmistas são anunciadores dos atos salvíficos do Senhor. Quando pregavam, quando recitavam uma poesia, eles atualizavam a ação de Deus na vida da comunidade de Israel. E eles mesmos eram parte integrante dessa comunidade adoradora.

Nos salmos, pregar é adorar; pregar é orar; pregar é louvar. O anúncio brota de um coração ditoso pela intervenção de Deus na própria história pessoal.

Pastores, missionários e missionárias: vocês são os salmistas de hoje. Deus fez grandes obras no passado. Vocês anunciarão essas obras, e Deus fará grandes obras através da vida de vocês. A proclamação, o anúncio, a pregação nada mais é do que fruto de um coração adorador. O pastor Isaltino Gomes diz acertadamente, em um dos seus livros: “A teologia é vida e transmite vida”. Outro teológo também afirmou: “o Deus do Antigo Testamento é o Deus da experiência, não o Deus da especulação.” E, bem disse Helmuth Theilicke: “o pensamento teológico só pode respirar em uma atmosfera de diálogo com Deus”. Eu diria que o cerne do pensamento teológico dos Salmos respira uma atmosfera de diálogo com Deus e com os oprimidos/sofredores. Os salmos são como brotos que surgem num cenário pós-queimada. São flores de esperança surgidas em meio aos arbustos secos da perseguição e da angústia. Expressam o louvor de um suplicante no meio de um temporal de sofrimentos e perseguições.

Estimados formandos, vão e sejam os salmistas do nosso mundo contemporâneo. Antes de pregarem sobre Deus, preguem o Deus que operou maravilhas na vida de vocês. Antes de pregarem sobre a criação, mostrem-se como novas criaturas. Antes de pregarem sobre salvação, anunciem os frutos da salvação presentes na vida de vocês. Antes de pregarem sobre oração, preguem a oração de vocês. Antes de pregarem sobre o perdão dos pecados, desafiem as pessoas a olharem a maravilha do perdão de Deus em sua vida. Antes de pregarem sobre adoração, preguem a vida de vocês como modelo de adoradores. Antes de pregarem sobre confiança, que vocês digam como o salmista: “Senhor, em ti confio” (Salmo 71.1). Antes de pregarem sobre a presença de Deus, preguem essa oração pessoal: “Todavia estou sempre contigo; tu me seguras com a mão direita” (Salmo 73.23).

E assim, vocês verão que não são dos fortes a vitória, nem dos que correm melhor, mas dos fiéis e sinceros. Então vocês experimentarão que “os que esperam no Senhor renovarão suas forças; subirão com asas como águia; correrão e não se cansarão; andarão e não se fadigarão” (Isaías 40.31).

Termino expressando o desejo do meu coração para vida de vocês: “aquele que começou a boa obra em vós irá aperfeicoá-la até o dia de Cristo Jesus”. Amém.

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