segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

A certeza da salvação - A eternidade da obra consumada de Cristo


Pr Luciano R. Peterlevitz – Missão Batista Vida Nova, 11.12.2011


Ev. João 5.24: Em verdade, em verdade vos digo quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida.


Muita gente tem medo de morrer sem ter pedido perdão a Deus por algum pecado que cometeu. Outros tem medo que Deus os leve de repente, sem estar 'preparado'. Pois, para essas pessoas, a salvação depende da perseverança e do esforço pessoal. Nessa perspectiva, até o último momento da vida pode-se perder a salvação. Assim, a vida eterna é um tipo de ioiô: vai e volta.

Entretanto, reafirmaremos uma das doutrinas essências do Protestantismo Reformado, a Segurança da Salvação ou Perseverança dos Salvos. A salvação concedida pela graça mediante a fé na obra consumada de Cristo jamais pode ser perdida. Uma vez salvo, para sempre salvo. Pois aquele que crê em Jesus é selado pelo Espírito da promessa, e é guardado eternamente pelo poder de Deus. Os salvos continuarão salvos porque porque a base da salvação é a obra consumada de Cristo.


Principais questões:

Já que sou salvo pela graça mediante a fé, então posso pecar à vontade? Não! Salvação pela graça mediante a fé não significa que temos licença para vivermos uma vida no pecado. Veja Rm 6. Já falamos que o salário do pecado é a morte. Os crentes geralmente não conseguem entender a Perseverança dos Salvos porque não distinguem entre salvação/justificação pela graça e santificação. Confundem a salvação com o resultado da salvação.

E aqueles que se 'desviaram'? Continuam salvos? “Saíram dos nossos, porque não eram dos nossos” IJo 2.19. Se fossem dos nossos, teriam permanecido conosco. Ou seja, a perseverança não é a causa da salvação, mas o resultado dela. O grande problema é que tem muita gente não convertida, nas igrejas. Isso me faz lembrar uma estória. Certa vez, um pastor, após receber o aviso do falecimento de um membro de sua igreja, publicou uma nota no boletim: “Fulano partiu para o céu às 03h da madrugada.” No dia seguinte, o pastor recebe uma mensagem do céu: “Fulano ainda não chegou aqui. Aguardamo-lo com grande expectativa. Céu, 08h da noite.

E os crentes que fracassam na vida cristã? Sim, o crente está sujeito à tentação e ao fracasso. Os grandes personagens bíblicos fracassaram. Mas a graça e poder de Deus os capacitaram a se erguer.


Somos salvos pela graça de Deus mediante a fé. Não vem de nós. Isso significa afirmar que a salvação não depende dos nossos méritos pessoais, mas dependente unicamente da obra consumada de Cristo na cruz. Acreditar que nossa obediência é o que garante a salvação eterna é a mesma coisa que afirmar que conquistamos nossa salvação pela obediência.



1. A salvação eterna foi prometida pelo próprio Jesus

Jo 3.15: “para que todo aquele que nele crê tenha a vida eterna”.

Jo 3.36: “Por isso, quem crê no Filho tem a vida eterna...”

Jo 10:27-29: "Eu lhes dou a vida eterna - jamais perecerão eternamente -ninguém as arrebatará da minha mão - da mão do Pai ninguém pode arrebatar.

Jo 11:25,26: "Quem crê em mim, ainda que morra viverá ; e todo o que vive e crê em mim, não morrerá eternamente."

A Bíblia diz que aquele que crê no Filho Unigênito tem a vida eterna. Não se trata, portanto, de uma vida 'quase' eterna ou temporária.


2. A salvação eterna foi consumada através da morte de Jesus

“Está consumado”, disse Jesus (Jo 19.30). Toda a nossa dívida com Deus foi paga pela morte de Jesus.

Um dos grandes dos problemas da crença na perda da salvação é a incompreensão do que seja pecado. É que, para essa linha de pensamento, existem pecados mais sérios (que fazem com que percamos a salvação) e pecados menos sérios (que não causam necessariamente a perda da salvação).

Mas a Bíblia diz que pecado é pecado. Não existe diferença entre 'pecadinho' e 'pecadão'. É bom que se diferencie: pecado e pecados. O pecado: 'pecado original' (Gn 3), que todos nós incorremos em Adão. Pecados: atitudes que afrontam a santidade de Deus; são resultados de nossa natureza pecaminosa. Entretanto, todo pecado resulta na morte eterna.

Todo pecado é contra Deus (Sl 51.4). Todo pecado fere a santidade de Deus, e só pode ser tratado com a penalidade eterna, a morte.

Mas quando cremos em Jesus, somos perdoados por Deus. Muitos perguntam: 'será que Deus perdoa mesmo'. No entanto, a Escritura diz que Deus é fiel e justo para perdoar os nossos pecados: 1Jo 1.9. Quando cremos em Jesus, somos perdoados. Normalmente temos dificuldade em aceitar que Deus perdoa todos e tudo porque na verdade nós temos problema de perdoar todos e tudo.


3. A salvação eterna é preservada em nós pela ação do Espírito Santo em nós

Quando cremos em Jesus, somos selados pelo Espírito Santo da promessa: Ef 1.13.

Jo 10:27-29 - "Eu lhes dou a vida eterna - jamais perecerão eternamente -ninguém as arrebatará da minha mão - da mão do Pai ninguém pode arrebatar.

Somos guardados pelo poder de Deus: 1Pe 1.3-5. Alguém já disse acertadamente que não é o crente que perde a salvação, é o Salvador que não perde o crente.

Não há mais condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus: Rm 8.1. O Espírito testifica com nosso espírito que somos filhos de Deus.

Quando cremos em Jesus, tornamo-nos filhos de Deus. Ninguém pode deixar de ser filho.

O Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis. Nesse ponto entende-se a extrema relevância da doutrina da Perseverança dos Salvos para a vida cotidiana do crente. Pois a certeza de que somos filhos de Deus move a oração (Rm 8.14-17). Éramos filhos da ira, mas fomos adotados pelo Pai celestial. Somos filhos de Deus. Somos herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo. Recebemos o espírito de adoção, baseados no qual podemos clamar Aba, Pai. Nada pode nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus: Rm 8.28-39.


Porque eu estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor. Amém.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Pela graça sois salvos, mediante a fé - A fé na obra consumada de Cristo


Pr Luciano R. Peterlevitz – Missão Batista Vida Nova, 27.11.2011


Efésios 2.8-9: Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie.



Introdução

Ef 2.1-10 descreve a trajetória de pessoas que estavam condenadas à morte, mas encontraram a vida eterna em Jesus.

Nossa situação sem Cristo: v.1-3. Corresponde a Rm 1.18-3.20. Estávamos mortos em nossos pecados e delitos; andávamos segundo o curso mundo (escravos de um sistema); andávamos segundo o príncipe da potestade do ar (escravos de Satanás); andávamos segundo nossa carne (escravos de nós mesmos); éramos por natureza filhos da ira.

A intervenção de Deus em nossa situação: v.4-10. “Mas Deus, que é rico em misericórdia” (v.4). Do sepulcro, fomos elevados aos lugares celestiais juntamente com Cristo. Deus manifestou sua “misericórdia”, seu “grande amor para conosco” (v.4), “a suprema riqueza de sua graça”, a “bondade para conosco” (v.7).

Então surge a declaração do v.8: “Pela graça sois salvos, mediante a fé”. Essa declaração pode mudar o rumo de sua vida.



Pela graça

A graça é o favor imerecido. Isso obviamente contradiz o censo comum.

Desde pequenos, aprendemos que, para alcançar nossos objetivos, precisamos fazer por merecer. Somos avaliados o tempo todo: pelos pais, pelo chefe, pelo pastor, pela professora... Por exemplo: uma criança merece o presente de natal se obedece ao papai e à mamãe.

O problema é quando as categorias de mérito e demérito são aplicadas à salvação. Veja. A Bíblia diz que pecadores podem ir ao céu e que religiosos e bonzinhos podem ir ao inferno. Isso contraria o senso comum, que diz que pecadores merecem o inferno e que religiosos e bonzinhos merecem o céu. O censo comum constrói suas afirmações por critérios de méritos e deméritos fundamentados naquilo que o ser humano faz ou deixa de fazer. Mas a graça inverte esses critérios. Na graça, aquele que não merece, recebe imerecidamente o dom gratuito, sem fazer por merecer.

Alguém diria que a graça é injusta. De modo algum. Veja Rm 3.21-26. Deus disse que o salário do pecado é a morte, e Ele mesmo pagou esse salário para nos salvar, através da morte de Jesus. Então, Aquele que oferece gratuitamente a salvação, já pagou o preço que Ele mesmo estipulara à salvação. Por isso, Deus é justo e justificador daquele que crê em Jesus.

A morte de Jesus na cruz é a maior prova do amor de Deus para conosco. Mas a morte de Jesus também é a maior prova de sua justiça. Deus abomina o pecado. Pois na cruz manifesta-se o amor de Deus, mas também a sua ira. Na cruz há um brado de morte.

Na verdade, Deus é mais rigoroso do que o senso comum. Porque, segundo as Escrituras, Deus não hesita em mandar para o inferno tanto o pecador quanto o moralista/religioso que não confiam na suficiência da obra de Cristo. Deus é rigoroso, porque exige um único e caro pagamento: a morte. Isso Jesus já resolveu por nós.

Há ainda outro ponto, que também demonstra que Deus é mais rigoroso do que senso comum imagina. Porque o que Ele exige para alguém estar em Sua presença não é nada mais do que a perfeição. Essa perfeição, aliás, após a Queda da humanidade (Gn 3) só existe Nele mesmo. Então o Deus justo e justificador coloca sobre nós a perfeita justiça de Cristo, permitindo que tenhamos acesso a Ele. Essa é a justiça mencionada no livro de Romanos. De fato a justiça de Deus se revela no evangelho (Rm 1.17).

Mas, por outro lado, ser salvo é mais fácil do que a gente imagina. Mas como? Deus exige a perfeição Dele mesmo para estarmos diante Dele. Então, o dom gratuito de Deus é fácil de receber? A Bíblia responde: basta crer! A graça só é compreendida pela fé. “Pela graça sois salvos, mediante a fé”.



Mediante a fé

A incredulidade é o pecado capital. De acordo com o Evangelho de João, pecado é não crer em Jesus: Jo 16.8-9. Nesse sentido, pecado não somente significa transgredir a lei, mas também transgredir a graça.

Mas, o que significa crer em Jesus? A salvação “não vem de vós; é dom de Deus”. A fé não é fundamento da nossa salvação. A graça de Deus o é. “Sois salvos pela graça”, diz o texto. O perigo então é tornar a fé como mérito para a salvação. Assim a salvação seria a recompensa da nossa fé.

Veja, por exemplo, a frase: “Aceite Jesus”. A pergunta, “o que devo fazer para ser salvo?”, normalmente é seguida pela resposta “aceitar Jesus”. O problema, tanto da pergunta quanto da resposta, é a tendência de interpretar a salvação a ser conquista por algo que tenho de fazer, enquanto a fé em Jesus, de acordo com as Escrituras, implica muito mais num caráter passivo do que ativo. A Bíblia diz que os filhos de Deus são aqueles que recebem Jesus (Jo 1.12). Recebemos o dom gratuito, a obra consumada de Cristo, pela fé. A obra de Cristo já está pronta, consumada.

Aqui cabe uma boa definição de Francis Shaeffer: a fé é mão vazia, é o instrumento pelo qual recebemos o dom gratuito de Deus. Crer é confiar plenamente na suficiência da obra consumada de Cristo.

Então, Deus é mais bondoso do que a gente imagina. O senso comum diz: tudo o que tem muito valor, é difícil de ser conseguido. Afinal, as coisas boas não 'caem do céu'. Mas Deus olha para um ladrão arrependido, e diz: “Você está perdoado”. Por outro lado, como vimos, Deus é mais rigoroso do que a gente imagina. Ele olha para alguém que fez tudo certinho na vida, mas não creu em Jesus, e diz: “Você está condenado”. Veja Jo 3.16-18.

No final, muitos dirão: “mas se fosse só isso, então eu teria feito!”. Então Deus responderá: “mas você não deveria ter feito; deveria ter crido.”

Portanto, o simples ato de crer é mais difícil do que a tentativa de se salvar pelas obras. Pois crer significa despojar-se de si mesmo, dos seus méritos pessoais. Um dos nossos grandes problemas é que sempre queremos dar um jeitinho para tudo. Mas, ao que diz respeito à salvação, precisamos crer que Deus já resolveu tudo através da morte de Jesus.

*O bote que virou no Niágara com dois tripulantes. A graça é a corda tênue que seguramos pela fé, à qual podemos nos agarrar, e que nos leva ao porto seguro da presença de Deus.

“Pela graça sois salvos”. O verbo salvos, segundo John Stott, enfatiza as consequências permanentes de uma ação de Deus no passado, e pode ser traduzido da seguinte forma: “Sois pessoas que fostes salvas e que permaneceis salvas para sempre.” Alguém pode perguntar: como isso é possível? E a Bíblia responde: creia, simplesmente.



Conclusão

Um artista retratou o rosto de certo homem. O homem retrato disse: 'no futuro, quando olharem este quadro, as pessoas se lembrarão mais do artista do que de mim'. Assim, nós também somos feituras de Deus, criados em Cristo Jesus (Ef 2.10). Não receberemos um troféu. Nós somos o troféu. Somos a pintura da graça de Deus. Somos amostras daquilo que Deus pode fazer com alguém que simplesmente crê.


Aquela voz que disse “Lázaro, sai para fora” ecoou em nossos ouvidos. E saímos do sepulcro mortal para vivermos nos lugares celestiais juntamente com Cristo. Mas, para isso aconteça em sua vida, a única pergunta que o Senhor faz é: ‘você crê que eu posso tirar você do túmulo?’.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Piedade Pervertida

Luciano R. Peterlevitz


Fiz algumas anotações do texto do Ricardo Quadro Gouvêa, A piedade pervertida – Um manifesto anti-fundamentalista em nome de uma teologia de transformação. São Paulo: Grapho Editores, 2006.


O livro é uma avaliação crítica aos modelos eclesiásticos contemporâneos, que, apesar de se identificarem como evangélicos, nutrem um catolicismo medievalesco e um misticismo pagão. Para a construção de uma Igreja pautada nos valores bíblicos, é preciso superar o absolutismo fundamentalista, que tende a priorar mais os sistemas ou os dogmas do que as pessoas.


Seguem alguns insights do livro.


“Hoje percebe que as igrejas se tornaram empresas da fé. Elas visam o crescimento, a ampliação, e insistem na ordem e na organização, eliminando quaisquer dúvida ou práticas que possam colocar tais prioridades em risco, sem nunca se perguntarem se tais questionamentos ou práticas não poderiam um indicativo dos desvios das igrejas.” (p.14).


Ricardo afirma que o Princípio Protestante, “impresso de forma indelével nos grandes ideais da Reforma Protestante, foi abandonado” (p.25). “O Princípio Protestante, quando enfatizado, torna os membros das igrejas excessivamente críticos, isto é, capazes de avaliar criticamente o ensino e as práticas da própria igreja.” (25).


Hoje o princípio sola scriptura foi esquecido no meio evangélico, “pois a Bíblia é lida somente através de óculos doutrinários que não permitem que ela fale por si mesma. Ela só fala aquilo que os constrangimentos impostos pela leitura dogmática permitem que ela fale.” (p.26).



“O que mais caracteriza a medievalização da igreja é o eclesiasticismo sacramentalista” 27). Percebe-se hoje o conceito equívoco, no meio evangélico, que a instituição eclesiástica é a intermédia entre Deus e os homens.


A medievalização é percebida na Igreja atual sobretudo na forma de “fetichismo” ou “feitiçaria” como instrumento de manipulação de Deus. Ricardo afirma:

“Todos sabemos que a adoração e o louvor a Deus é parte central do culto cristão e da piedade cristã. Entretanto, o ‘louvorzão’, assim como as vigílias e as reuniões de oração, e até mesmo o mais simples culto de domingo, muitas vezes não passam de um tipo de superstição que beira a feitiçaria, uma vez que ele é realizado no intuito de ‘forçar’ uma ação benévola da parte de Deus, como se o culto e o louvor fossem um ‘sacrifício’, como os antigos sacrifícios pagãos. Neste caso, não temos mais liturgias, mas sim teurgias, nas quais procura-se manipular o poder de Deus”. (p.28).


Ricardo afirma que os jovens deveriam ser estimulados a comporem músicas que não somente falem das doutrinas que professam, ou dos jargões evangélicos comuns, mas músicas “que expressassem os valores do Reino de Deus, de tal forma que esses valores pudessem ser artisticamente comunicado à sociedade em geral” (p.41).


O autor nega que a mera evangelização possa contribuir para o desenvolvimento da sociedade. “Se todo o país se converter, isso só resolverá os problemas financeiros das igrejas, mas não resolverá as mazelas sociais e culturais do país. Estas só se resolverão quando os valores do Reino de Deus forem infundidos na própria cultura e na sociedade em geral.” (p.41).


A liturgia “deve ser um meio de transporte, não um cárcere. E um cárcere decorado no estilo clássico tradicional ou no estilo informal contemporâneo, continua sendo um cárcere, em vês de um veiculo de libertação.” (p.61).


O lema da tolerância cristã é: em tudo que é essencial, a unidade; em tudo que não é essencial, a pluralidade, em todos reine o amor.


“Se o individuo possui uma fé que se deixa escandalizar facilmente por argumentos, é até benéfico que ele perca essa fé salsa e fraca, para que, afora sim, sem a ilusão de que já crê, venha a ser um alcançado pela graça de possuir uma fé legitima, calcada no amor e na Palavra, sustentada pela tradição.” (p.79).


É preciso que haja paz, amor, tolerância. Precisamos da capacidade para dialogar com as diferenças. “As pessoas são mais importantes que as ideias, que os movimentos ou nossas convicções doutrinarias ou litúrgicas.”


“Os fundamentalistas colocam as verdades dogmáticas acima das verdades bíblicas e acham que estas últimas equivalem sempre às primeiras...Em fez de fazer da Bíblia o critério para a avaliação da tradição, fazem da tradição dogmática o critério para a interpretação da Bíblia.’ (p.92).


“Feitiçaria é utilizar objetos e palavras mágicas para controlar forças naturais e sobrenaturais. Muitas igrejas ditas evangélicas estão fazendo justamente isto, transformando os objetos do culto e da devoção em amuletos e fazendo das orações e louvores não mais que palavras mágicas para o controle de Deus, de anjos e de demônios. Tudo isto é um lamentável engano, uma exploração de crendice do povo inculto e um afronta ao genuíno espírito da reforma que combateu arduamente todas as formas de superstição cristã medieval semelhantes a essas.” (p.93).


Um dos grandes perigos da igreja atual é o guetoísmo eclesiástico, isto é, fechar-se em si mesma para si mesma. “Consideramo-nos melhores que os outros, melhores que os perdidos, sem perceber que só não somos perdidos por termos sido alcançados pela graça e, consequentemente, termos sido vocacionados, em Cristo, para viver em amor e serviço pelos perdidos.” (p.103).


“A espiritualidade de uma comunidade cristã se mede pelo que ela faz das portas da igreja para fora, e não pelo que ela faz das portas da igreja para dentro.” (105).

terça-feira, 8 de novembro de 2011

O Deus de

Luciano R. Peterlevitz


Leia Êxodo 3.1-16


Êxodo 3 descreve a auto-apresentação de Deus para Moisés. Mas como Ele se apresenta? Ora, Deus é o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó, o Deus do pai de Moisés, o Deus de Moisés. Deus é o Deus de. Vejamos.



O Deus de: é o Deus que se vincula a alguém (v.1-6)

V.1: “monte de Deus, o Horebe”. O Horebe é outro nome do Sinai. No Antigo Testamento Deus se manifesta no monte Sinai: Ex 19-20 (dez mandamentos); 1Rs 19 (lugar de refúgio de Elias na hora da perseguição). Deus manifesta-se num lugar santo, na sarça ardente. Mas a ação do Senhor não se restringe a esse lugar. Pois Deus não se vincula a um lugar; Ele se vincula às pessoas.

Deus é o Deus que caminha com as pessoas

Deus está no meio da sarça ardente, mas ao mesmo tempo Ele está com as pessoas. Ele é o “Deus do teu pai”; é o Deus de Abraão, o Deus de Isaque; é o Deus de Jacó (v.6). O texto destaca a dinamicidade de Deus; Ele viaja com seu clã. Deus está com um grupo. Veja Gn 12-25. Deus esteve com Abraão com ele saiu de Harã rumo à terra prometida.

Veja Gn 28.10-22 / compare com Gn 35.1-4. Deus esteve com Jacó quando ele saiu da terra prometida, e foi a Mesopotâmia, fugindo do seu irmão; Deus esteve com Jacó com ele saiu da Mesopotâmia e retornou à terra prometida. O Deus de Jacó é o Deus de. É o Deus que caminha com as pessoas.

Deus é o Deus que se revela pessoalmente a cada um

Deus não se revela a uma multidão. Ele se revela a alguém, pessoalmente. Deus chama as pessoas pelo nome, e se revela a cada de forma diferente. Por isso Ele é o Deus de Abraão; o Deus de Isaque; o Deus de Jacó; o Deus de Moisés; o Deus do pai de Moisés.

Assim, surge a inevitável pergunta: cada um de nós temos, pessoalmente, um relacionamento com Deus?



O Deus de: é o Deus que se auto-limita por amor

Deus é Poderoso. Mas Ele se auto-limita. Ele se identifica com as pessoas. Ele é o Deus do teu pai; o Deus de Abrão, Isaque, o Deus de Jacó. Deus não se envergonha de ser chamado o Deus dessa gente (Hb 11.16).

Existe uma maneira de Deus se apresentar: ele pode se manifestar como o Deus criador dos céus e da terra. Mas aqui em Êxodo 3 Ele se apresenta como o Deus de. É o Deus dos hebreus, dos escravos (3.18). Deus se auto-denomina como o Deus dos escravos! Quer maior auto-limitação do que essa? Ele é o Deus que se identifica com os escravos para libertar os escravos. No livro do Êxodo, Deus sempre se apresenta como “Eu sou o Senhor que te liberta” (veja 6.6; 20.2).

O Deus a-histórico entra na história, e participa da história daquela gente oprimida. Ao entrar na história, Deus se auto-limita. Só um Deus como o nosso Deus pode limitar-se, e continuar sendo o Deus Poderoso. Isso se evidencia nos v.7-22. O Deus de é o Deus que desce (v.7-22)

No v.7 duas frases:


Realmente eu vi[1] a opressão[2] do meu povo que (está) no Egito,

e o clamor[3] deles eu ouvi diante das faces[4] dos seus opressores.


Na primeira frase destaca-se a expressãorealmente eu vi”, literalmentever eu vi”. Deus cuidadosamente aopressão”. É um ver que participa daquilo que vê. É um ver intenso, exato. Este é o ver de Deus. A 'opressão' é o rebaixamento físico, humilhação. Este termo está relacionado aos “oprimidos”, “pobres”, tão defendidos pelos profetas (veja por exemplo Am 2,6-8; Is 3,13-15!), pela lei (veja Êx 22,20 até 23,1-9). Deus é o Deus que contempla essa gente e participa das dores dessa gente.

Na segunda frase do v.7, o destaque é oclamor”. Os escravos estão gritandodiante das faces dos seus opressores”, mas quem ouve os seus gritos é Senhor. Portanto, oclamornão é um grito passivo, incapaz de produzir efeito, antes, é um som ativo, que percorre um caminho bem especifico: um caminho que leva à libertação.

No v.8 o detalhamento do 'ver' do v.7:


Eu desci para livrá-lo da mão do Egito,

e fazê-lo subir desta terra para a terra boa e vasta...


, no v.8, dois verbos: “desceresubir”. “Eu desci”, diz o Senhor. No caso, o Senhor desceu à terra da escravidão. O segundo verbo alude a Israel. Os escravos sobem para a terra boa e vasta porque Deus desceu para a terra da opressão.

Ou seja, o Senhor vai onde o povo oprimido está. Essa linguagem teológica aproxima-se da última afirmativa de 2,25: “conheceu/experimento Deus (os sofrimentos dos hebreus)”.

Deus desce à opressão; os escravos sobem à terra da promessa. Isso é um anúncio da cruz. É uma antecipação do que Cristo faria. Pois Cristo desceu à opressão, tomou nossas dores, participou dos nossos sofrimentos, para fazer-nos subir aos lugares celestiais. Veja Ef 1.3.

No v.9 a direção é invertida. Se no v.8 Deus 'desceu', agora é o 'clamor' que sobe a Deus:


E agora, eis que o clamor dos filhos de Israel veio para mim,

e especialmente[5] eu vi a opressão com que os egípcios os estão oprimindo.


O 'clamor' sobe a Deus e então Ele passa a 'ver'. Portanto, o Deus de é o Deus que desce. E o clamor sobe! É um povo que clama, e quer ser ouvido. É o Deus que ouve, desce e vê, porque decide-se ouvir, descer e ver. Deus quer ouvir. O povo quer ser ouvido. Essa é a reciprocidade da oração.

É nesse cenário que Deus revela seu o nome (v.13-14). Ele é o “Eu sou o que Sou”, ou melhor, Ele é o Deus que acontece e que faz a história acontecer. É o Deus que age na história dos escravos e liberta-os da escravidão. Esse é o sentido do nome sagrado nesses v.13-14.

Nos v.15-16 o nome e a ação de Deus são melhor explicados:


15 E continuou falando Deus para Moisés:

Assim dirás para aos filhos de Israel:

Javé, o Deus dos vossos pais,

o Deus de Abraão, Deus de Isaque,

e o Deus de Jacó

enviou-me para vós.

Este é o meu nome para sempre,

e este é o meu memorial de geração em geração.

16 Vá e reúna os anciãos de Israel,

E dirás para eles:

Javé, o Deus dos vossos pais, apareceu[6] para mim,

o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó,

Dizendo:

Realmente vos visitei

e (tenho) agido[7] para vós (a favor de vós) no Egito.



Deus é “o Deus dos vossos pais”; esse é o seu “nome” (v.15). O Senhor é o Deus de.

Mas, no v.16, Deus se revela mais apropriadamente como o Deus Libertador: “Javé o Deus dos vossos pais apareceu para mim”. Importa que o Deus dos pais apareceu “para mim” (para Moisés).

As duas últimas frases do v.16 são significativas. A primeira frase: “realmente vos visitei”. O verbo ‘visitar’ lembra a ação do 'Deus dos pais' (Veja Gn 21!). Mas a última frase refere-se especificamente o êxodo: “e (tenho) agido para vós (a favor de vós) no Egito”.

Portanto, Deus é o Deus que está na sarça ardente, na 'terra santa', mas é principalmente o Deus que está “no Egito”. Ele é o “Deus dos hebreus”, e vai ao encontro dos hebreus (veja Êx 3.18!). Assim, Deus é o 'Deus de'.


No dizer de Jünger Moltmann, teólogo, ex-soldado e ex-prisioneiro da Segunda Guerra Mundial, o Deus cristão é o “Deus crucificado”. A teologia de Moltmann é muito interessante. Conhecida como a “teologia da esperança”, surgida a partir de sua experiência dolorosa de Moltmann como prisioneiro de guerra num campo de concentração na Inglaterra. Um repórter da revista Cristianismo Hoje perguntou ao teólogo: O senhor descobriu Cristo durante a última guerra. Em geral se consideram as experiências do mal como causas de afastamento de Deus. De que modo tais realidades podem aproximar-nos dele?

Resposta:

Aos 16 anos eu queria estudar matemática e a religião era muito distante dolaicismode minha casa. Em 1943 me alistei como soldado, e sobrevivi à tempestade que destruiu Hamburgo com 40.000 mortos. Quando o amigo junto a mim foi dilacerado por uma bomba, por primeira vez clamei a Deus...

Uma das grandes questões para Moltmann não é “como falar de Deus após Auschwitz?”, mas “como não falar de Deus após Auschwitz?” (Auschwitz foi um campo de concentração ao sul da Polônia durante a segunda guerra mundial; estima-se que um milhão e meio de pessoas tenham morrido ali, principalmente judeus e ciganos). Para Moltmann, falar de Deus depois de Auschwitz foi fundamental, pois a esperança em Deus foi a única coisa que o capacitou a vencer os tormentos de um campo de concentração. Afinal, são os tormentos que nos levam a gritar por Deus.

Moltmann menciona a novela Demônios, de Dostoiévski, para afirmar que um Deus que não pode sofrer é mais desgraçado do que qualquer homem. Em El Dios crucificado, o teólogo afirma que um Deus que não pode chorar é porque não tem lágrimas; e um Deus que não pode sofrer, também não pode amar. Esse Deus é o Deus de Aristóteles, o Motor Imóvel, mas não é o Deus de Jesus Cristo.

Moltmann relata sua experiência no campo de concentração foi decisiva para sua compreensão de Deus:

Ali li a Bíblia pela primeira vez. E me chegou a leitura dos salmos de lamentação. Li o Evangelho de Marcos e me encontrei com o grito de Jesus: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”. Soube prontamente:Aí há alguém que te compreende porque passou pela mesma situação sua e ainda pior. E quando, lentamente, fui entendo isso, pude exclamar em meu coração: Senhor meu e Deus meu” E por isso creio no Deus que compartilha nossa dor e sofre por nós e, desta maneira, nos dá nova certeza para viver...

Uma das grandes questões da teologia de Moltmann é: onde estava Deus, nos episódios de Auschwitz? Onde estava Deus quando os inocentes foram arrancados de suas casas, violentados, acorrentados, torturados e jogados naquele lugar frio, passando sede e fome? A essa pergunta, só existe uma única resposta: Deus estava lá, sofrendo com aquelas pessoas. Um Deus impassível se tornaria um demônio. “É Deus em Auschiwitz e Auschiwitz em Deus crucificado”, diz Moltmann.

Só assim o Deus cristão pode ser compreendido. Deus é o Deus de Abraão, Deus de Isaque; o Deus de Jacó; o Deus de Moisés; o Deus do pai de Moisés; o Deus dos hebreus; o Deus de Auschiwitz.



[1] Literalmente: “ ver eu vi”, tradução do verbo ra’ah no infinitivo absoluto, seguido pelo mesmo verbo conjugado na primeira pessoa do singular.

[2] Hebraico ’ani: opressão, aflição.

[3] Hebraico se‘aqah: clamor, grito de socorro.

[4] Hebraico mippene: diante das faces.

[5] Hebraico gam: também; até. Mas pode significar “em especial”.

[6] Hebraico ra’ah: “olhar”, no nifal perfeito.

[7] Hebraico ‘asah: verbo qal participativo passivo masculino singular.


Leia também:

Eu Sou o Senhor

Êxodo - o livro dos nomes

Opressão e Esperança - Êx 1.8-2.10