domingo, 14 de julho de 2013

MISSÃO INTEGRAL DA IGREJA – CRIADOS PARA AS BOAS OBRAS



Mensagem pregada pelo Pr Luciano R. Peterlevitz, no culto dirigido pela Jubacel, na PIB de Americana, em 13.07.2013

Efésios 2.10: Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas.

Introdução
A teologia da Missão Integral da Igreja surgiu na América Latina, entre 1960 e 1970, e foi inicialmente articulada por teólogos latino-americanos preocupados com a situação de pobreza dos países da América Latina. A igreja anunciava um evangelho cuja salvação era relegada totalmente para o futuro; o que importava era o céu, um lugar etéreo, onde as almas incorpóreas gozariam de plena alegria e satisfação. As necessidades físicas não eram importantes; o essencial era a salvação da alma. Mas alguns teólogos, observando a distância entre a mensagem anunciada pela Igreja e a situação de pobreza dos países latino-americanos, perceberam a necessidade de repensar o conceito de missão da Igreja.
A questão destacada naquele momento foi que a salvação não é somente um evento futuro (a ser desfruta somente no céu) e restrito à alma/espírito. Em termos temporais, a salvação começa aqui e agora, ainda que sua consumação esteja reservada para o futuro. Em termos de abrangência, a salvação diz respeito à restauração integral do ser humano.
Nos dias de hoje o lema da Missão Integral da Igreja é: o Evangelho todo para todo o homem e para o homem todo.
A teologia da Missão Integral influenciou o Pacto de Lausanne, assinado por 2.500 cristãos de 150 países, no Congresso Mundial de Evangelização ocorrido em Lausanne (Suíça), em 1974. Destacamos aqui um trecho do Parágrafo 5º: ... nos arrependemos de nossa negligência e de termos algumas vezes considerado a evangelização e a atividade social mutuamente exclusivas. Embora a reconciliação com o homem não seja reconciliação com Deus, nem a ação social evangelização, nem a libertação política salvação, afirmamos que a evangelização e o envolvimento sócio-político são ambos parte do nosso dever cristão.

Certamente a teologia da Missão Integral é relevante para nossos dias, em que as injustiças sociais ainda imperam. Porém, alguns defensores da Missão Integral têm se enveredado por alguns extremismos, que precisam ser evitados. Analisemo-los rapidamente:
1)      Ação social é mais importante do que evangelização. Esse é um extremismo que precisa ser evitado. De fato a fé sem obras é morta. Mas obras sem fé no evangelho também são mortas. René Padilha, um dos mais conhecidos representantes da Missão Integral, afirma que “a missão integral inclui a proclamação oral de Jesus Cristo como Senhor e Salvador”. O Pacto de Lausanne também destaca que a libertação política não significa salvação. Os pobres precisam de restauração social, mas também carecem da graça de Deus em Cristo. Veja Cornélio: convertido ao judaísmo, homem temente a Deus, fervoroso em oração, dava esmolas aos necessitados (At 10). Ele praticava boas obras, mas, sem Cristo, estava perdido.
2)      A vida presente é mais importante do que a vida futura. De fato a vida eterna começa agora. Mas não podemos reduzir a vida ao ‘aqui’ e ao ‘agora’. “Pelo fato de colocarmos ênfase na responsabilidade social e política da igreja, não estamos colocando de lado a salvação em Cristo Jesus para toda a eternidade em sua presença”, diz Padilha. Se nossa esperança se limita só apenas nessa vida, somos os mais infelizes de todos os homens.
3)      Mais Jesus, menos Igreja. Cada vez mais aumenta o número dos‘desigrejados’, defensores de um tipo de espiritualidade sem igreja. Mas a Igreja é o Corpo de Cristo. O institucionalismo deve ser evitado, e o ritualismo religioso é severamente condenado nos livros proféticos e por Jesus. Mas é impossível desenvolver a vida cristã sem o vínculo com a comunidade dos salvos por Jesus, a Igreja.
Feitas essas considerações, podemos refletir sobre a Missão Integral da Igreja a partir de Ef 2.10. Os versos anteriores (v.1-9) dizem o que éramos (nosso estado sem Cristo, o que fazíamos sem Cristo) e o que Deus fez por nós. Ef 2.10 diz quemnós somos e o que fazemos, em razão do que Deus fez por nós.

1. Quem somos: “feitura dele”
Somos “feitura dele (de Deus)”. A palavra “feitura” (grego poiema) pode ser traduzida por “obra”. Em Cristo, somos uma obra de arte de Deus. A palavra aparece em Rm 1.20, referindo-se à criação iniciada em Adão. O problema é que essa criação está corrompida e decaída. Por um só homem, Adão, o pecado entrou no mundo, e pelo pecado, a morte, e a morte passou a todos os homens (Rm 5.12). Mas Deus está formando uma nova humanidade, em Cristo. “E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura” (2Co 5.17a). 
Deus faz uma grande obra em nossas vidas, e faz das nossas vidas uma grande obra. De acordo com Ef 2.1-9, somos salvos pela graça mediante a fé, sem obras. Estávamos mortos, mas Deus nos deu vida em Cristo. Dos sepulcros fomos elevados para as regiões celestiais em Cristo. Nossa palavra portuguesa “poesia” provém do grego poiema,palavra empregada nesse texto de Ef 2.10 e traduzida por “feitura”.Em Cristo, somos a poesia de Deus. A graça divina pode transformar cadáveres em obra de arte viva. O Senhor não somente faz uma grande obra; Ele a faz com arte. Em meio à morte, Deus faz ressurgir a vida. Nossas vidas são como flores que nascem em meio a arbustos secos.
Não importa seu atual estado. Importa o que Deus pode fazer em você, pelo poder da sua graça. Você sente-se um trapo? Jesus é especialista em trapos. Muitos dizem: “não tenho jeito”. Mas pau que nasce torto não precisa morrer torto.
Sl 100.3: Sabei que o Senhor é Deus, foi ele quem nos fez.
Num mundo de trevas, Deus quer transformar você em luz. Num mundo marcado pela morte, Deus levanta pessoas do túmulo e as transforma em troféus da vitória de sua graça. Em meio à feiura deste mundo, Deus pode transformá-lo numa obra de arte.

2. O que fazemos: “criados em Cristo Jesus para as boas obras”
Quando o texto descreve quem nós somos (“feitura dele”), necessariamente está dizendo o que fazemos agora. Ser e fazer são verbos indissociáveis. Se verdadeiramente nós somos nova criatura, devemos fazer novas ações. Boas obras são um resultado natural de quem foi salvo pela graça de Deus. Somos obras de Deus criadas para as boas obras.
“a quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas”. Outrora andávamos segundo o príncipe deste mundo (v.2). Outrora andávamos “segundo as inclinações da carne” (v.3). Agora o v.10 descreve um novo andar, uma nova maneira de viver.
O que são, exatamente, boas obras? Arrisco uma definição: são todas as coisas boas resultantes da graça de Deus e planejadas por Deus. 
As “boas obras” não são “obras da lei” (justiça vinda pela prática da lei), incapazes de produzir a salvação (Rm 3.20; Gl 2.16). Também não são meramente “obras”, para que ninguém se gloria (v.9). As obras, sem a obra de Cristo, são trapos de imundícia. Trata-se de “boas obras”. Essas obras são boas porque são ações resultantes da graça e da bondade de Deus. Não fazemos boas obras porque somos bons. Fazemos boas obras porque Deus é bom. Só Ele é bom. Somos salvos pela graça de Deus (Ef 2.8).
Boas obras são todas as coisas boas planejadas por Deus. Não se trata simplesmente de ajudar os necessitados. É claro que o engajamento contra os problemas sociais deve fazer parte da agenda da Igreja. Veja, por exemplo, o envolvimento dos profetas com as questões políticas e sociais do antigo Israel. Também, é óbvio que a ajuda aos necessitados é parte fundamental da tarefa da Igreja. No dizer de Tiago, a fé sem obras é morta. Mas aqui em Ef 2.10 o conceito de “boas obras” transcende a práxis da Igreja junto aos necessitados. É isso, também. Mas, é mais do que isso. 
Voltemos à definição aventada por nossa reflexão: boas obras são todas as coisas boas resultantes da graça de Deus e planejadas por Deus. Quem disse que pregar a Palavra não é uma boa obra? Quem disse que compor e cantar uma música não são coisas boas? Quem disse que pautar sua família nos valores da Palavra de Deus, educando filhos nos valores cristãos, formando assim filhas e filhos equilibrados para sociedade, não é coisa boa?
Exemplifiquemos melhor.
Exemplo 1: Maria estava depressiva, e diariamente pensava em tirar a própria vida. Mas, movida pelo Espírito Santo, ela se dirigiu a uma igreja, onde ouviu um pastor pregar a Palavra de Deus. Ela respondeu positivamente à Palavra viva e eficaz, invocou o nome do Senhor, e reconheceu Jesus como Senhor e Salvador. O pastor e aquela igreja iniciaram um trabalho de acompanhamento emocional para Maria. Às vezes ela ainda tem algumas recaídas emocionais, mas naquela comunidade ela é acolhida, aconselhada, e sua vida foi transformada pelo poder do Evangelho. Ora, aquele pastor e aquela igreja não fizeram uma boa obra?
Exemplo 2: pode-se dizer que aqueles que trabalham com viciados são pessoas que fazem boas obras. Mas, e aquelas pessoas que trabalham com adolescentes e jovens em nossas igrejas, ensinando-lhes a Palavra de Deus, alertando-os sobre os perigos do mundo, mostrando que os caminhos dos vícios conduzem à morte? Essas pessoas também não estão fazendo boas obras? Normalmente achamos que boas obras significam tirar jovens viciados do poço, mas esquecemos daquelas pessoas que também fazem boas obras, ao se colocarem à beira do poço e alertarem os jovens sobre o perigo do poço. Impedir que uma pessoa se lance no poço é tão importante quanto tirar uma pessoa do poço.
Voltemos a Ef 2.10. É notável também que, em última instância, as boas obras são obras de Deus. Observe que o texto diz que as boas obras foram preparadas pelo próprio Deus. Nesse texto bíblico, boas obras não são exatamente ações humanas, mas são ações preparadas e realizadas pelo próprio Deus. Nós simplesmente andamos nelas! Ou seja, Deus está fazendo muita coisa boa no mundo, hoje. Precisamos vencer o negativismo. Há pessoas que só veem coisas ruins no mundo. Se, por um lado, a violência, a pobreza e a injustiça parecem prevalecer, por outro lado, tem muita gente ajudando muita gente. Veja, por exemplo, o trabalho batista da Cristolândia. Sim, Deus está fazendo boas obras através de pessoas. Pessoas são instrumentos. Deus é o agente. Diz o texto de Efésio que Ele mesmo preparou essas boas obras.
Então o Senhor diz: “Estou fazendo uma boa obra no mundo. Você quer participar dessa obra?”. Que tal atender ao convite do Senhor?
Conclusão
1.      A obra de Deus é completa. O Senhor não faz nada pela metade. A salvação proposta por Ele foi consumada pela morte e ressurreição de Cristo. É uma salvação completa, integral. Ele restaura o ser humano de maneira integral (corpo, alma/espírito). O Evangelho é o poder de Deus para salvar aquele que crê. Acredite: Deus pode fazer muito além daquilo que você pensa.
2.      Vivemos uma situação caótica: tráfico de drogas, corrupção, pobreza e miséria, violência, abuso e exploração de criança, injustiças, etc. Só o poder do Evangelho revelado em Cristo pode reverter a situação caótica em que vivemos. Do caos, surge a esperança. Da morte, a vida. O Senhor quer fazer de você uma obra de arte em meio ao caos.
3.      As boas obras foram planejadas por Deus. Agora, precisamos andar nelas. Você não é salvo pelas boas obras, mas é salvo para as boas obras. Não fazemos coisas boas porque somos bons, mas porque Deus é bom. Não fazemos boas obras para alcançar a bondade de Deus. Fazemos boas obras porque o Senhor já derramou sua bondade sobre nós. Não fazemos para que Deus faça algo por nós. Fazemos porque Ele já fez tudo por nós.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

1CO 11.29: A INTERPRETAÇÃO DE GORDON D. FEE




Carta escrita pelo Pr Luciano R. Peterlevitz aos pastores, realçando a importância do aprimoramento dos processos de interpretação bíblica.

1Coríntios 11.29: pois quem come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe juízo para si. (Ameida Revista e Atualizada).

Estimados colegas pastores,

Creio que todos nós estamos conscientes que uma das tarefas fundamentais do ministro cristão é a pregação da Palavra de Deus. Quão grande responsabilidade foi-nos concedida! Somos arautos da verdade.  A Palavra de Deus (sua voz e Sua vontade) é manifesta mediante a pregação que nos foi confiada pelo mandato de Deus, nosso Salvador (Tt 1.3). Acreditamos que, para a excelência do exercício da pregação, precisamos constantemente buscar ferramentas que auxiliem na preparação de mensagens. Por isso escrevo esta carta. Para realçar que nós (inclusive eu!), como intérpretes da Palavra, precisamos aprimorar os processos de interpretação bíblica.  
No momento, estou envolvido na preparação de uma apostila sobre Hermenêutica Bíblica, para o curso de Teologia da Faculdade Teológica Batista de Campinas. Estou lendo e relendo algumas obras sobre o assunto, e redescobrindo a importância da hermenêutica para a preparação das minhas mensagens e estudos. Isso tem sido grande benção na minha vida. Uma das obras lidas por mim é Hermenêutica: uma abordagem multidisciplinar da leitura bíblica (São Paulo, Shedd Publicações, 2012), tendo Elmer Dyck como editor. Trata-se de uma coletânea de textos, cada qual enfocando aspectos importantes do processo de interpretação do texto bíblico. Um dos textos foi escrito por Gordon D. Fee[1]: “A história como contexto para a Interpretação”, p.11-35. Em um dos momentos do texto, mostrando a importância da análise do conteúdo no processo exegético e hermenêutico, Fee oferece uma interpretação sobre 1Co 11.29.
Achei oportuno compartilhar com os irmãos a interpretação de Fee sobre 1Co 11.29. Meu objetivo nesta carta não é reafirmar ou analisar criticamente a interpretação do autor. A presente carta constitui-se simplesmente anotações sobre a interpretação de Fee sobre 1Co 11.29, cabendo aos colegas analisarem se tal interpretação possui fundamentação adequada.
Antes da interpretação do texto bíblico supracitado, Gordon D. Fee aborda diversas outras premissas do processo de interpretação de um texto bíblico, que reclamam insistentemente o direito de serem relembradas por nós, intérpretes da Palavra.
Gordon D. Fee primeiramente justifica a necessidade da hermenêutica. A hermenêutica é necessária, já que é impossível ler as Escrituras sem a interpretação. Outra razão da hermenêutica apresentada por Fee diz respeito à natureza das Escrituras. Ora, um pressuposto fundamental para a instrumentalização da hermenêutica é a afirmativa de que as Escrituras possuem dupla autoria, a divina e a humana. Ou seja, em última instância o Autor da Bíblia é Deus, já que o Espírito Santo impeliu os santos profetas e apóstolos para falarem em nome de Deus; por outro lado, a revelação divina foi necessariamente expressa em linguagem humana e foi mediada pela história humana em contextos bastante particulares. “Isto é: assim como cremos que nosso Salvador é, ao mesmo tempo, tanto humano quanto divino, assim também acreditamos que Escritura é ao mesmo tempo, humana e divina.” (p.14). Portanto, a Bíblia é a Palavra de Deus revelada através de homens, no decorrer da história.
Isso significa que, para a correta interpretação da Bíblia, existem alguns elementos que auxiliam a interpretação da Escritura: 1) conhecimento das línguas bíblicas (hebraico, aramaico e grego); 2) conhecimento da cultura dos autores e dos leitores originais da Bíblia; e 3) conhecimento do contexto histórico e geográfico da Bíblia.
É por essa razão que as perguntas sobre o contexto do texto são fundamentais, no processo de interpretação. Ao tratar sobre o contexto, o intérprete responderá às seguintes questões: 1) quanto ao gênero: qual é o tipo de literatura? Narrativa, poesia, profecia, parábola, epístola?; 2) quanto ao contexto histórico: qual o pano de fundo histórico cultural?; 3) quanto ao contexto literário: qual o significado do versículo ou palavra no contexto dos versículos que vem antes e depois, e no contexto do livro onde está inserido o versículo ou palavra? Após as perguntas sobre o contexto, Fee salienta que o intérprete precisa perguntar pelo conteúdo: significado lexicográfico (o que essas palavras significam nesse contexto específico?); significado gramatical (como essas palavras se relacionam umas com as outras?); pano de fundo histórico (quais alusões ou pressuposições históricas existem por detrás dessas palavras?).
A partir destes instrumentais hermenêuticos, Gordon D. Fee se propõe a analisar 1Co 11.29. Após uma interessante interpretação de 1Co 3.16-17[2] , Fee analisa 1Co11.29 a partir das questões contextuais. Duas questões orientam sua análise: 1ª) qual significado da palavra ‘corpo’? Seria o corpo crucificado de Cristo ou a igreja?; 2ª) qual o significado do verbo diakrino, “discernir, reconhecer, ou julgar corretamente”?
Vamos ao texto, por três traduções:
Pois quem come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe juízo para si. (Ameida Revista e Atualizada).
Porque o que come e bebe indignamente come e bebe para sua própria condenação, não discernindo o corpo do Senhor (Revista e Corrigida).
Pois quem come e bebe sem ter consciência do corpo do Senhor, come e bebe para sua própria condenação. (Ameida Século XXI).

Observa-se que a RC e a Almeida Século XXI adicionam “do Senhor” à palavra “corpo”. A ARA, por sua vez, simplesmente traduz “corpo”, sem nenhum qualificador, conforme o texto grego.
Nos v.24 e v.27 o “corpo” notadamente é o corpo crucificado de Jesus. Fee faz duas considerações a respeito do uso da palavra ‘corpo’ no v.29, à luz do contexto imediato (p.29). Primeira: é a primeira vez que a palavra ‘corpo’ é usada sem o qualificador (meu corpo; corpo do Senhor). Segunda: o corpo é mencionado, no v.29, sem relação ao cálice ou ao sangue.
À luz dos v.21 e v.22, pode-se constatar que a Ceia era um tipo de refeição particular usufruída pelos ricos em detrimento dos pobres. Alguns comiam opulentamente, enquanto outros não tinham o que comer. De acordo com o v.21, a ceia de Corinto não era a ‘Ceia do Senhor’ (v.20), mas uma ceia particular (idion deipnon, “própria ceia”, uma refeição muito particular). Assim, as divisões apontadas no v.18 certamente têm bases sociais. Fee indaga: “o que está por detrás de tudo isso? Como devemos entender o modo de os coríntios abusarem a mesa do Senhor?” (p.31). O autor recorre ao contexto histórico-cultural para responder essas questões e esclarecer o real sentido dessa passagem bíblica.
“Sabemos que as igrejas primitivas se reuniam em casas, e que muitas vezes as casas eram de estilo romano com os próprios cômodos formando um tipo de retângulo em derredor de um pátio aberto chamado átrio. Um dos cômodos chamado triclínio (reclinando-se em três lados de uma mesa) era a sala do jantar. Também sabemos, pela arqueologia de Corinto, que não existiam casas – ou pelo menos não foi descoberta nenhuma – em que mais de doze pessoas podiam ter se reclinado confortavelmente no triclínio. Se o triclínio estava sendo usado para essas refeições aludidas por Paulo, somente um grupo seleto podia ter sido admitido, e as demais pessoas teriam ficado lá fora, no átrio.” (p.31-32).
Fee salienta que a expressão “sua própria ceia” (v.21) pode estar relacionada com uma prática comum do mundo greco-romano, conhecida por textos de antigos escritores: o anfitrião selecionava os hóspedes mais importantes, e para eles servia uma refeição privilegiada, enquanto que outros hóspedes eram divididos em subcategorias, e para cada categoria era servida um tipo de refeição. Quanto mais importante era o hóspede, mais requintada era a comida. Fee cita dois escritores antigos (Marcial e Plínio, o velho), que fazem referência a essa prática.
Gordon D. Fee acredita que é algo desse tipo que é condenado por Paulo, em 1Co 11.29. O autor imagina que os ricos celebravam “sua própria ceia”, no triclínio, “ao passo que a maioria composta por certo de escravos ou de libertos pobres (cf. 1.26) eram basicamente excluídos da refeição dos outros e, portanto, eram excluídos da própria mesa do Senhor” (p.33).
Nesse contexto, não “discernir” o corpo significa não reconhecer o corpo de Cristo (a igreja) como um espaço igualitário, onde as diferenciações entre ricos e pobres inexistem. “Deixar de discernir assim o corpo e abusar dos de categoria social inferior é incorrer no juízo divino”, diz Fee (p.34).
O autor não ignora a referência ao sangue e ao corpo crucificado do Senhor. Isso porque o sangue de Jesus produz um efeito vertical e horizontal: aproxima-nos de Deus, verticalmente, e nos aproxima do próximo, horizontalmente.
Na verdade, o que Fee pretende demonstrar, a partir da interpretação de passagens de 1Corintios (aqui ressaltamos sua interpretação de 1Co 11.29), é que “a história é o primeiro contexto para a interpretação” (p.35). Ou seja, a interpretação precisa levar em conta o pano de fundo histórico-cultural do texto, e necessariamente precisa anteceder à aplicação.
Podemos discordar da interpretação de Gordon D. Fee sobre 1Co 11.29. Mas creio que todos nós concordamos no principal argumento do autor: para a correta interpretação e aplicação da Palavra de Deus em nossos dias, é preciso considerar seriamente as particularidades dos textos bíblicos em seus contextos históricos, literários e teológicos.
O texto de Gordon D. Fee e os demais artigos do livro Hermenêutica: uma abordagem multidisciplinar da leitura bíblica enriqueceram sobremaneira meus instrumentais hermenêuticos. Por isso, recomendo-os aos estimados colegas. Abaixo também alisto outras obras de hermenêutica bíblica, que também poderão contribuir para o aprimoramento de suas pregações.
Na paz de Cristo,
Pr Luciano R. Peterlevitz

BIBLIOGRAFIA DE HERMENÊUTICA BÍBLICA
BERKHOF, Louis. Princípios de interpretação bíblica.  Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1965.
CARSON, D.A. Os Perigos da Interpretação Bíblica. 2ª edição. São Paulo: Edições Vida Nova, 2001.
DYCK, Elmer (editor). Hermenêutica: uma abordagem multidisciplinar da leitura bíblica. São Paulo: Shedd Publicações, 2012.  
GRUDEM, Wayne; COLLINS, C. John; SCHREINER, Thomas R. Origem, confiabilidade e significado da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 2013.
HENRICHSEN, Walter A. Princípios de interpretação bíblica. 3ª edição.  São Paulo: Editora Mundo Cristão, 1986.  
KAISER, Walter C.; SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica Bíblica: Como ouvir a Palavra de Deus apesar dos ruídos de nossa época. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002.  
LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes: uma breve história da interpretação. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
LUND, E. & NELSON, P. C. Hermenêutica: Princípios de interpretação das Sagradas Escrituras. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Vida Nova, 2006.
OSBORNE, Grant R. A espiral hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009.
ZUCK, Roy B. A interpretação Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1994.



[1] Autor conhecido por outra obra publicada em português: Entendes o que lês? (Edições Vida Nova), em parceria com Douglas Stuart.
[2] Segundo Fee, em 1Co 3.16-17 o ‘santuário de Deus’ não é uma referência à destruição do corpo individual do cristão; antes, ‘santuário de Deus’ é a igreja como coletividade, que no contexto da epístola de 1Co estava sendo destruída pela sabedoria humana sobreposta à mensagem da cruz e pelas contentas de alguns membros de Corinto contra seus líderes – Paulo e Apolo).