sexta-feira, 28 de maio de 2010

A Trindade no Antigo Testamento

Luciano R. Peterlevitz

INTRODUÇÃO
Há um grande debate sobre a doutrina da Trindade no Antigo Testamento. Os Pais da Igreja afirmaram categoricamente que o Deus de Israel é Trino. Desconsideraram assim a revelação progressiva. Outros teólogos, em contrapartida, defendem que a doutrina da Trindade inexiste no contexto veterotestamentário. Existe também a afirmação de que embora no Antigo Testamento Deus seja Trino, ali a doutrina da Trindade não é manifesta de maneira tão clara. Assim, ensinar essa doutrina tendo por fundamento o Antigo Testamento é cristianizar por demais o texto.
É verdade que na antiga aliança não existe uma manifestação clara da Trindade. No entanto, podemos afirmar que a manifestação do Deus de Israel é plural. Muitos estudiosos até afirmam que essa pluralidade é apresentada porque originalmente o conceito de Deus surgiu num contexto politeísta. O pluralismo a respeito do divino apresenta-nos um resquício da crença politeísta.[1] Mas prefiro acreditar que essa pluralidade está de acordo com a crença cristã na Trindade.
Começaremos nossa discussão com Deuteronômio 6.4. O foco inicial é a palavra hebraica ehad “um”, “único”. Analisaremos também outros textos, para afirmamos que, apesar de Deus no Antigo Testamento ser Um, ele é plural, o que favorece a doutrina cristã da Trindade nos textos veterotestamentários.

1. A UNICIDADE DE DEUS – DEUTERONÔMIO 6.4
Como conciliamos a fé num Deus único expressa no Antigo Testamento com a afirmação de que ele é o Deus Trino? Ora, antes de tudo, deve ser afirmado que crença cristã na Trindade não é a crença em três Deuses, mas a crença em três Pessoas que participam da natureza divina de maneira plena e integral. Assim, mesmo em Dt 6.4, onde lemos a afirmativa que Deus é único, podemos identificar o Deus Trino. Vejamos:

Shemá Israel YHWH Eloheinu YHWH ehad.
“Javé nosso Deus Javé Um”

Atentemos-nos para a palavra “um’. Na língua hebraica existem duas palavras que expressam unidade:
1) ehad “único”, “um”: “enfatiza a unidade, embora reconheça diversidade dentro da unidade”.[2]
2) Yahid: também significa “único”, “um”, mas se refere a uma unidade simples (singular) ou absoluta.
A palavra usada em Dt 6.4 é ehad! Sobre isso, Stanley Rosenthal afirma:
“A última palavra hebraica da Shema ‘Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é único’ (Dt 6.4) é echad, que, embora traduzido por ‘único’, é um substantivo coletivo - em outras palavras, um substantivo que, embora, denote unidade, a classifica, pois, representa uma unidade que contém várias unidades. Poderíamos citar um bom número de exemplos. Em Números 13.23 lemos que, os espias, pararam em Escol onde ‘cortaram um ramo de vide com um cacho de uvas’. A palavra hebraica que aqui aparece como ‘um’, em ‘um cacho’, novamente é echad; porque, como é evidente, esse único cacho de uvas consistia em muitas uvas.” [3]

Portanto, a palavra ehad seria uma alusão ao Deus único, mas que contém em si a diversidade de Pessoas.[4]
Vejamos ainda ouros usos da palavra ehad:
Gênesis 2:24: Portanto, o homem deixa o seu pai e a sua mãe, e deve decompor-vos a sua mulher: e eles serão uma (ehad) carne. (Grifo do autor)
Êxodo 24:3: E Moisés chegou e disse ao povo todas as palavras do SENHOR, e todos os acórdãos: e todo o povo respondeu a uma (ehad) voz. (Grifo do autor). Veja que nesses dois textos ehad é uma unidade na diversidade: uma carne (duas pessoas); uma voz (de muitas pessoas).

A título de exemplo, a palavra hebraica yahid é usada nos seguintes textos:
Jeremias 6: 26 – Ó filha do meu povo, cinge-te de saco, e revolve-te na cinza; pranteia como por um filho único (yahid), em pranto de grande amargura...(unidade simples).
Amós 8: 10 - ..., e calva sobre toda cabeça; e farei que isso seja como o luto por um filho único (yahid), e seu fim como dia de amarguras...(unidade simples).
Provérbios 4: 3 – Quando eu era filho aos pés de meu pai, tenro e único (yahid) em estima diante de minha mãe...(unidade simples).
Gênesis 22: 2 – Prosseguiu Deus: Toma agora teu filho, o teu único (yahid) filho Isaque, a quem amas...(unidade simples).

É verdade que a palavra ehad também pode referir-se a uma unidade simples:
Deuteronômio 17: 6 - "Pela boca de duas testemunhas, ou três testemunhas, aquele que merece a morte deve ser posto à morte; mas pela boca de uma (ehad) testemunha, ele não deve ser posto à morte."
Eclesiastes 4: 8 - "Há apenas um (ehad), sem uma companhia; sim, ele nem tem filho...".
Vê-se, então, que a palavra ehad pode se referir a uma unidade coletiva e a uma unidade singular.
Mas e quanto Dt 6.4? A palavra ehad significa unidade coletiva ou unidade singular? É verdade que o versículo enfatiza o fato de que há um só Deus, e “Israel deve a ele sua exclusiva lealdade (Dt 5;9; 6.5).”[5] No entanto, outros pontos precisam ser considerados, para a afirmativa de que a palavra ehad alude a uma unidade na diversidade. Comecemos com uma explicação do nome Elohim.

2. O NOME ELOHIM
Elohim é a palavra hebraica que normalmente é traduzida em nossas Bíblias como “Deus”, e em alguns casos como “deuses”. Em Gn 1.1,26 a palavra hebraica está no plural, bem como os pronomes que a acompanham. Isso leva a teologia cristã a afirmar que o texto faz referência à Trindade (veja também Is 6.8a).
Muitos especialistas, no entanto, pensam que o nome Elohim é um plural majestático, pelo qual se quer enfatizar a grandeza do Deus de Israel. O “plural sem dúvida é um aumentativo de exaltação, frisando a majestade de Deus, e não a idéia de pluralidade de pessoas.”[6]
Entretanto, pode-se averiguar que uma plenitude plural é encontrada no Antigo Testamento com referência a Deus, o que indica a doutrina da Trindade.
Antonio Neves Mesquita afirma que não havia o uso do plural majestático na antiguidade.[7] “Assim, se Moisés dizia, desçamos, vejamos, façamos, e outras, era porque mais de uma pessoa estava sendo envolvida no ato. Não havia, podemos dizer, tal uso na antiguidade; tudo que se diz, nesse sentido, é pura invenção moderna.”[8] Esse mesmo estudioso diz que o pronome e o verbo no plural em Gn 1.27 indicam as três Pessoas da Trindade, pois está “de acordo com o teor geral da Bíblia de que as três pessoas da Santíssima Trindade tomaram parte na criação (Gn 1.2; João 1.1-5 e ref.).[9] Assim, “é mais provável que o significado seja de uma pluralidade de personalidade, visto que Deus e o Espírito de Deus aparecem em Gênesis 1.”[10]
Outros pensam que o termo Elohim é um superlativo. Sobre isso, afirma Botterweck: “Provavelmente o plural não significasse originalmente uma pluralidade, mas uma intensificação. Neste caso, ‘elohim poderia significar ‘grande’, ‘o mais alto’, e finalmente, ‘apenas’ Deus, isto é, Deus, em geral.”[11]
Além disso, outros estudiosos têm afirmado que uma das formas de se expressar o superlativo na língua hebraica é o uso do plural. Assim, para se dizer que El é fortíssimo (El significa ‘forte’) usar-se-ia o plural Elohim (‘fortes’). Essa seria a razão de o verbo estar no singular (“e disse”) e o sujeito no plural em Gn 1.26.
Mas cabe afirmar que a teologia cristã tem interpretado o plural em Gn 1.26 como uma referência à Trindade. Agostinho assim procedeu.[12] Mas, muito antes de Agostinho, o apóstolo João já havia afirmado que o Logos estava com Deus antes da criação, e que por Ele foram criadas todas as coisas (Jo 1.1-3)!
Portanto, a Trindade é manifesta no Antigo Testamento pelo nome Elohim. Nas palavras de Walter A. Elwell, o “plural do nome de Deus (Elohim), bem como o uso dos pronomes (Gn 1.26; 11.7), e dos verbos (Gn 11.7; 35.7) no plural assim indicam.”[13]
Há, ainda, outras razões para pensarmos que o nome Elohim alude a uma manifestação plural de Deus no antigo Israel: a manifestação ‘o Anjo’, da ‘palavra’, e do ‘Espírito’. Esses três são identificados com o próprio Deus.

3. O ANJO DO SENHOR
No Antigo Testamento, o Anjo do Senhor é distinto de Deus, mas também é identificado com o próprio Deus. Ele aparece em Gn 16.7-13. As promessas feitas (v.10) claramente demonstram que o Anjo do Senhor não era um anjo qualquer. Em Gn 32.22-32 ‘o Anjo’ aparece para Jacó, e assim se identifica: “Eu sou o Deus de Betel” (v.13). Assim, ele se identifica com o Deus que se manifestou em Betel (Gn 28.18-22). Em Gn 48.15-16 essa idenficação é objetiva:
“O Deus em cuja presença andaram meus pais Abraão e Isaque,
o Deus que me sustentou durante a minha vida até este dia,
o Anjo que me tem livrado de todo mal, abençoe estes rapazes; seja neles chamado o meu nome e o nome de meus pais Abraão e Isaque; e cresçam em multidão no meio da terra.”
Outros textos poderiam ser citados (Êx 3.2, cf. Jz 6.11-24; Ml 3.1). Mas esses bastam para a afirmação de que o “Anjo do Senhor” no Antigo Testamento é Deus. É uma Pessoa distinta na divindade.
Muitos estudiosos afirmam que essa identificação do Anjo do Senhor com o próprio Senhor é uma interpolação tardia no texto bíblico, feita para evitar uma descrição do Deus de Israel excessivamente antropomórfica.[14]
A meu ver, no entanto, o Anjo do Senhor é mais uma evidência de que a manifestação divina é plural. “Isso aponta para distinções pessoais dentro da Deidade.”[15]
É curioso que as aparições do ‘Anjo do Senhor’ terminaram após a encarnação de Cristo. Muita coincidência, não!? No Antigo Testamento, o Anjo do Senhor acompanhou Israel na caminhada pelo deserto (Ex 14.19; cf.23.20). O Novo Testamento diz que a Pedra que seguia Israel era Cristo (1Co 10.4).

4. A PALAVRA
Além do Anjo do Senhor, que no Antigo Testamento se apresenta como Deus, há outro elemento que contribui para pluralidade da manifestação do divino: a Palavra, participante da criação (Sl 33.6; 107.20).
No Sl 33.6 lemos:
Os céus por sua palavra se fizeram,
e, pelo sopro (ruah) de sua boca, o exército deles.

H.J. Kraus diz que a palavra criativa do Senhor traz à existência os céus e a terra. “Há uma correspondência intrínseca entre o Espírito de Deus e o fôlego da vida procedente da boca de Deus, e a palavra de Deus com o sopro de sua boca (Is 11.4).”[16]
Mas a teologia cristã afirma que há muito mais do que uma correspondência entre Deus, o Espírito e a palavra. “A palavra não é simplesmente uma comunicação a respeito de Deus, nem o Espírito é um mero poder divino. São, pelo contrário, o próprio Deus em ação.”[17]
Mesquita afirma que os antigos rabinos acreditavam na divindade do Messias.[18] Essa afirmação é feita a partir de uma interpretação do Sl 2.7 enquanto uma alusão ao Messias Filho de Deus, bem como a partir da identificação do Anjo do Senhor como sendo o próprio Senhor. Além disso, o fato de o Novo Testamento ser “escrito por judeus, é uma prova que eles acreditavam no Messias divino”, diz Mesquita.[19] Oskar Skarsaune demonstrou veementemente que a cristologia do Logos Encarnado, encontrada em Jo 1.14, é oriundo não do mundo helênico, mas do mundo judaico.[20] Isso significa afirmar que o judaísmo antigo interpretava a Palavra como mediadora da criação. Além disso, a crença judaica na Sabedoria como mediadora da criação nos textos apócrifos judaicos é tão parecida com a Trindade cristã, que quando os estudiosos procuraram um termo que explicasse seu papel – na relação com Deus único, e ao mesmo tempo externo a Ele - “viram-se obrigados a recorrer à terminologia trinitária”[21]

5. O ESPÍRITO SANTO
Lemos no Antigo Testamento lemos que o Espírito é Deus.
Vejamos Gn 1.2: “o Espírito pairava sobre a face as águas”. A palavra hebraica Espírito é ruah, que significa ‘vento’, espírito, ‘Espírito’. Alguns comentaristas pensam que Gn 1.2 deveria ser traduzido como “e um vento de Deus pairava...”.
Mas outros textos bíblicos demonstram a participação do Espírito na criação (Is 63.10; Sl 33.6; Sl 104.30.). Wilf Hildebrandt afirma que o “Salmo 33.6 é uma reflexão de Gn 1 e assevera que o evento da criação foi resultado da palavra falada de Deus trazida à realidade pelo seu ruah.”[22] Hildebrandt mostra que a frase ruah ’elohim (Espírito de Deus) “ocorre quinze vezes em hebraico e cinco vezes em aramaico. Ela nunca é traduzida como ‘um vento poderoso’ ou ‘um vento de Deus nestas ocorrências.”[23] Conclui-se assim que em Gn 1.2 o ruah é o Espírito de Deus, que também é agente na criação.

CONCLUSÃO
Pudemos averiguar que a manifestação de Deus no Antigo Testamento é plural. Assim, sou levado a concluir que palavra ehad usada em Dt 6.4 alude a uma unidade na diversidade. Isso é evidenciado pelas seguintes idéias: o uso plural do nome de Deus; a associação do Anjo do Senhor e da Palavra Criadora com o próprio Deus; e o Espírito Criador. Mesmo que a palavra “Trindade” não apareça na Bíblia, o Deus do Antigo Testamento é Trino. A Trindade, portanto, é apresentada no Antigo Testamento, ainda que de forma incompleta.
Termino com as palavras de John Theodore Murller:
“Não afirmamos que haja no Antigo Testamento a mesma clareza e evidência de testemunhos referentes à Trindade que há em o Novo Testamento; todavia asseveramos que tanto se podem como se devem citar do Antigo Testamento alguns testemunhos para exposição da doutrina da Trindade, visto que assim sempre se revelou desde o começo, a fim de que a Igreja de todos os tempos o pudesse conhecer, adorar e bendizer (...) como as três pessoas distintas numa só essência.”[24]







[1] H.H. Rowley. A fé em Israel – Aspectos do pensamento do Antigo Testamento. São Paulo. Editora Teológica, 2003, p.73.
[2] Herbert Wolff, em LAIRD, Harris, (editor), Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. Tradução Márcio Loureiro Redondo, Luiz Alberto Sayão, Carlos Osvaldo Pinto, São Paulo, Edições Vida Nova, 1998, p.47.
[3] Stanley Rosenthal. A Tri-unidade de Deus no Velho Testamento. Editora Fiel. O autor translitera a palavra hebraica como echad, que eu translitero por ehad.
[4] Para uma discussão pormenorizada da ehad, veja http://apologiajudaica.blogspot.com/2008/03/palavra-echad-dentro-do-contexto-no.html. Acessado em 29.09.08.
[5] Herbert Wolff, em LAIRD, Harris, (editor), Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p.48.
[6] R. N. Champlim. O Antigo Testamento interpretado versículo por versículo. São Paulo, Editora Candeia, 2000, p.09.
[7] Antonio Neves Mesquita. A doutrina da Trindade no Velho Testamento. Rio de Janeiro, Editora Dois Irmãos, 1956, p.17.
[8] Antonio Neves Mesquita. A doutrina da Trindade no Velho Testamento, p.18.
[9] Antonio Neves de Mesquita. Estudos no livro de Gênesis, rio de Janeiro, Juerp, 1979, p.88.
[10] Paul R. House. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo, Editora Vida, 2005, p.76-77.
[11] Botterweck, citado por Isaltino Gomes Coelho Filho. O Pentateuco e sua contemporaneidade. Rio de Janeiro: Juerp, 2000, p.30-31.
[12] Agostinho. Cidade de Deus, VVI, VI.
[13] Walter A. Elwell. Enciclopédia Histórica-Teológica da Igreja Cristã. Vol. 1. São Paulo, Vida Nova, 1988, p.442-443.
14 Ernst Jenni e Claus Westermann, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, Madrid, Ediciones Cristiandad, vol.1, 1978, p.1236.



[15] Charles C. Ryrie. Teologia Básica ao alcance de todos. São Paulo, Mundo Cristão, 2004, p.60.
[16] Wilf Hildebrandt. Teologia do Espírito de Deus no Antigo Testamento, p.59.
[17] Walter A. Elwell. Enciclopédia Histórica-Teológica da Igreja Cristã. Vol. 1, p.443.
[18] Antonio Neves Mesquita. A doutrina da Trindade no Velho Testamento, p.48.
[19] Antonio Neves Mesquita. A doutrina da Trindade no Velho Testamento, p.48.
[20] Oskar Skarsaune. À sombra do Templo – As influências do judaísmo no cristianismo primitivo. São Paulo, Editora Vida Nova, 2004, p.331-351.
[21] Oskar Skarsaune. À sombra do Templo – As influências do judaísmo no cristianismo primitivo, p.339, em nota de rodapé.
[22] Wilf Hildebrandt. Teologia do Espírito de Deus no Antigo Testamento. São Paulo, Editora Academia Cristã, 2004, p.35.
[23] Wilf Hildebrandt. Teologia do Espírito de Deus no Antigo Testamento, p.51.
[24] John Theodore Murller. Dogmática Cristã – Um manual sistemático dos ensinos bíblicos. Porto Alegre, Concórdia, 2004, p.166.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

O JACÓ E O ISRAEL - BREVE ANÁLISE DAS VISÕES DE AMÓS

Luciano R. Peterlevitz

O profeta Amós é reconhecidamente um profeta visionário. Ele é assim denominado até por seus oponentes (7.12). De fato, as “palavras” de Amós expressam aquilo que o profeta “viu a respeito de Israel” (1.1). Mas são as cinco visões narradas no livro que permitiram o profeta ser denominado de ‘vidente’. Tais visões compõem a terceira e última parte do livro de Amós, a saber, os capítulos 7 – 9, já que as duas outras partes são formadas por Am 1-2 (ciclo dos povos) e Am 3 – 6 (conjunto de ditos a respeito de Israel).
As cinco visões de Amós são bem delimitadas textualmente:
1ª visão: 7.1-3
2ª visão: 7.4-6
3ª visão: 7.7-9
4ª visão: 8.1-3
5ª visão: 9.1-4

Segundo muitos comentaristas, tais visões são fundamentais para a compreensão do livro de Amós. Nelson Kirst, em seu estudo sobre Amós, analisa 1.1-2, e imediatamente passa a analisar Am 7 – 9. Pois aqui, nas visões, “é que vamos encontrar o motor, a origem, o começo de Amós como profeta. Aqui é que vamos descobrir por que Amós foi para o norte e porque anunciou no norte aquilo que disse. Tudo o mais que nos é relatado no Livro não passa de decorrência das visões.”[1] Em 1.1, no título introdutório do livro, lê-se as “palavras que Amós viu”. À luz desta constatação, Milton Schwantes afirma que “o título do livro já remete para as visões.”[2] Schwantes afirma, sobre Amós:“Fala porque viu! É mensageiro porque é visionário! Portanto, Am 1 – 2 e 3 – 6 são iluminados pelas visões de Am 7 – 9.”[3]
Assim, Amós é mensageiro, porque é vidente. Pois fala como alguém que foi coagido pelo Senhor (3.8); fala em nome do Senhor (veja a fórmula “assim disse o Senhor”, em 1.3,6; 3.12; 5.16). Mas Amós também é “vidente” (7.12). Ele é qualificado assim pelas visões, em Am 7 – 9.
Passemos a analisar brevemente essas visões. Notar-se-á que as duas primeiras defendem a causa do “Jacó pequeno”, enquanto que a 3ª e 4ª, somadas à 5ª, afirmam que o juízo divino chegou para o povo de Deus, Israel.

1ª e 2ª visões
As duas primeiras visões formam um par. São parecidas na forma e no conteúdo:

1ª visão: 7.1-3
a) Fórmula introdutória “assim me fez ver meu Senhor Javé”: v.1a
b) A visão – a vinda dos gafanhotos: v.1b
c) Clamor do profeta – “Como subsistirá Jacó? Pois ele é pequeno”: v.2
d) O castigo é suspenso – “Não acontecerá, disse Javé”: v.3

2ª visão: 7.4-6
a) Fórmula introdutória “assim me fez ver meu Senhor Javé”: v.4a
b) A visão – a seca: v.4b
c) Clamor do profeta – “Como subsistirá Jacó? Pois ele é pequeno”: v.5
d) O castigo é suspenso – “Não acontecerá, disse Javé”: v.6

Em ambas as visões acontece o perdão. Na primeira visão, a praga dos gafanhotos ameaça o pequeno Jacó “depois da ceifa do rei”. A “ceifa do rei” é a tributação estatal sobre a produção camponesa (1Rs 18.5; cf. 1Sm 8.10-17). Mas, na visão de Amós, o que sobrou da cobrança tributária está sendo ameaçado pelos gafanhotos.
“Quando se deu essa visão, Jeroboão II, que era um grande guerreiro, e tinha, naturalmente, um exército tão grande que, com seus outros empreendimentos, exigia, uma grande parte da colheita serôdia. Só depois que ele se satisfizesse é que os lavradores podiam aproveitar o resto.”[4] Jacó é “pequeno”! É desprestigiado. E não usufrui nem do resto do fruto do seu trabalho!
Na segunda visão, uma grande seca ameaça os camponeses. O “grande abismo” é uma referência às “águas do subsolo, na Palestina tão decisivas para a sobrevivência no verão, nos meses da seca”[5]. Já o termo “herança”, que A Bíblia de Jerusalém acertadamente traduziu por “campo”, alude à parcela de terra dos clãs. Na primeira visão, a produção dos camponeses é atingida pela praga de gafanhotos. Nesta segunda visão, a ameaça (seca) se posiciona contra o meio de produção. “Em questão está tanto o resultado do trabalho dos agricultores quanto a própria condição de produzir.”[6]
Mas o “Jacó pequeno”, aquele que nem resto tem para usufruir, pode gozar do perdão divino. Nessas duas primeiras visões, o Senhor ouve o clamor do profeta, e suspende o juízo. Já os senhores do palácio, aqueles que se sustentam pela opressão dos pobres, terão a mesma sorte? À luz de 7.17, a resposta é obviamente negativa. O “Jacó pequeno” recebe o perdão divino. Aqueles que não têm nada, têm tudo. Em contrapartida, a monarquia de Jeroboão, que detinha a riqueza em suas mãos, não teria o presente tão valioso estendido ao pequeno Jacó.

3ª e 4ª visões
A terceira e a quarta visões formam um outro par, dentro do conjunto de Am 7 – 9. Tais visões são bem diferentes das duas primeiras, tanto na forma quanto no conteúdo. Ora, nas duas primeiras, o profeta clamou ao Senhor, e o juízo foi suspenso. Mas, na terceira e na quarta, o profeta não ora, e o Senhor não perdoa. A expressão “jamais passarei por ele”, em 7.8 e 8.2, poderia muito bem ser traduzida como “não tornarei mais a perdoá-lo” (A Bíblia de Jerusalém). Há, também, outra diferença. Nas duas primeiras visões, o conteúdo da visão não precisa de explicação. A visão em si suscita a súplica do profeta. Mas a terceira e quarta visões são explicadas pelo Senhor.
Quanto à forma, essas visões também são bem diferentes das duas primeiras. Nelson Kirst observa a seguinte estrutura formal da 3ª e 4 visões[7]:
a) introdução: “assim me fez ver meu Senhor Javé”
b) a imagem da visão, (1) introduzida por “e eis” e (2) apresentando uma cena estática, (3) não compreensível por si mesma.
c) pergunta de Javé: “O que está vendo, Amós?”
d) a resposta de Amós, concisa, apenas mencionando a imagem.
c) dito de Javé, interpretando a imagem.

Na terceira visão (v.7-8+9), Amós contempla Javé sobre um muro, tendo em Sua mão um “prumo”. A visão em si não tem sentido. Precisa ser explicada. É isso que o próprio Javé faz, no v.8: “Eis que vou pôr um fio de prumo no meio do meu povo, Israel” (tradução de A Bíblia de Jerusalém). Qual é o significado do “prumo”? O termo hebraico anak, traduzido por “prumo”, não acorre em nenhum outro texto da Bíblia Hebraica. A palavra também pode ser traduzida por “estanho”. Jörg Jeremias prefere esta tradução, aventando a possibilidade de o termo referir-se às armas fabricadas de bronze. [8] Mesmo que Israel tenha segurança e estabilidade (este seria o sentido do “muro”, no v.7, segundo Jeremias), Javé estenderia sua arma contra Israel e o destruiria.[9]
Mas, convém afirmar que o anak é um “prumo”, cuja função é examinar a qualidade do muro mencionado no v.8. Caso se encontre irregularidades, o muro precisa vir ao chão.
“O prumo é usado para verificar se há falta de retidão num muro ou parede. Ele não corrige a tortuosidade, mas a identifica. Deus sonda Seu povo, põe o prumo nele e constata sua sinuosidade na doutrina, na ética e nos relacionamentos. Deus coloca seu povo na balança e o acha em falta.”[10]
O v.9 é um dito adicionado à visão. Literariamente, o dito prepara o cenário para a narrativa a seguir (v.10-17). Algumas expressões encontradas no v.9 nos arremessam à narrativa seguinte:
> altares de Isaque, cf. v.16, onde se lê “casa de Isaque”.
> santuários de Israel, cf. v.13, onde se lê “santuário do rei”.
> casa de Jeroboão, cf. v.11, onde se lê “Jeroboão”.
No episódio narrado nos v.10-17, Amazias, o sacerdote de Betel, parece ter conhecimento das visões de Amós. Pois o sacerdote chama o profeta de “vidente” (v.12). E, na fala do v.12, Amazias realmente conhece o dito do v.9.
Passemos à quinta visão (8.1-2+v.3). Javé mostra para Amós um “cesto de frutos de verão”. A cena aponta à declaração no fim do v.2: “Chegou o fim do meu povo Israel”. Há um jogo de palavras entre qayis, “fruto de verão”, e qes, “fim’. Como afirmou Kunstmann, o sentido da visão é este: “agora meu povo está maduro para ser apanhado e recolhido.”
“Um anti-êxodo acontecerá. Com o êxodo, Israel foi trazido de uma terra estranha para uma terra que recebeu como sua. Agora, com o anti-exôdo, será levado da terra que lhe fora dado para uma terra estranha.”[11] Israel saiu de uma terra de escravidão para a terra da promessa. Mas voltaria à terra da escravidão, novamente.
Até aqui, percebeu-se que o “Israel” mencionado nessas visões não é o mesmo “Jacó pequeno”, referido nas duas primeiras. O “Israel” é o conjunto formado por “lugares altos de Isaque”, pelos “santuários”, pela “casa de Jeroboão” (7.9) e pelo “palácio” (8.3). Este é o “Israel, meu povo”. Trata-se da grandeza estatal do Israel do Norte.
Bem disse Jesus: dos pequeninos é o reino dos céus. O grande Deus se atenta aos pequenos. O “Jacó pequeno”, no contexto de Amós, era os camponeses desfavorecidos com sistema tributário administrado pela monarquia de Jeroboão II. Mas Javé estava pronto para estender sua graça aos desprestigiados. Da mesma forma, na época do Novo Testamento, os desprestigiados pela sociedade grego-romana tiveram uma atenção especial de Cristo.
Há, ainda, algo importante a se observar na 3ª e 4ª visões. O profeta Amós, em ambas, é nominalmente chamado por Javé: 7.8 e 8.2. As visões se caracterizam pelo diálogo entre o profeta e Javé. Amós é íntimo de Deus. Interessante: Deus preferiu se revelar por um pastor de ovelhas e vaqueiro, Amós, a manifestar suas palavras através do santuário Betel, que levava o nome divino (lembre-se: “Betel” significa ‘casa de Deus’).

5ª visão
A quinta visão é o auge final das visões. De certa forma, ela completa a 3ª e 4ª visões. Vejamos. A 3ª visão simplesmente afirmou que Javé não mais concederia seu perdão para Israel. Mas a 3ª visão não explicitou, exatamente, quais seriam as conseqüências do juízo divino. Isso é explicado na 4ª visão: “Chegou o fim sobre o meu povo Israel”. E, progredindo ainda mais, a 5ª visão explicita qual a dimensão desse fim: “nenhum deles poderá fugir, nenhum deles poderá escapar” (9.1, tradução de A Bíblia de Jerusalém). Nessa 5ª visão, “o fim da quarta visão chegou a sua interpretação cabal.”[12]
O lema da 5ª visão é: Javé está contra o “altar” (cf. 7.9). Nessa última visão, Amós contempla Javé batendo dos capitéis do santuário, de modo a causar um tremor que abala até os batentes do santuário. “O ‘fim’ é descrito em toda a sua dimensão, como de um juízo que parte de um terremoto provocado por Javé, tendo como epicentro o templo, e que assume as mais diversas formas até o extermínio absoluto.”[13]
O “altar” é uma alusão ao santuário de Betel, ainda que por extensão possa se referir aos demais santuários de Israel. Pelo livro de Amós, percebe-se que Javé abomina as instituições cúlticas cúmplices das injustiças e pobrezas da sociedade (2.8; 5.21-24; 8.5-6).
Não há escape para os transgressores de Israel. É isso que afirmam os v.2-4. Mesmo que os transgressores subissem ao lugar mais baixo, o xeol, ou ao lugar mais o alto, o “céu”, não poderiam escapar do juízo divino (v.2). Sobre o xeol, atentemo-nos para a explicação de Isaltino Gomes: “A linguagem é figurada. O xeol era o mundo subterrâneo. Poderiam tentar esconder-se num mundo subterrâneo, cavando até o xeol. Deus os tirariam de lá. Não haveria cavernas onde se escondessem.”[14]
No v.3, lemos a expressão “eu me colocarei contra eles” (Almeida Século XXI), que é bem melhor traduzida por “porei meus olhos sobre eles”. Frequentemente a expressão é usada na Bíblia Hebraica para se referir ao olhar benevolente de Deus (Gn 16.7-14). Ele é o Deus que vê os necessitados. Ele é o Deus que manifesta sua presença aos que sofrem. Mas, aqui em Amós, o olhar de Deus evoca o juízo. “Aí reside o terrível da nova situação: o castigo não se deve à ausência de Javé (...) Não a ausência, mas justamente a sua presença é que produz o juízo. A presença do Deus que escolheu o povo é que gera o extermínio do povo escolhido.”[15]
Há aqui uma lição para todos nós. Será que tememos diante da presença do Senhor? Pois, com a mesma medida em que Sua presença traz paz ao coração atribulado, também traz juízo ao coração endurecido pela cera do pecado.

Conclusão
A cinco visões arquitetam a mensagem de Amós. As duas primeiras são paralelas, e defendem a causa do “Jacó pequeno”. Este representa os camponeses espoliados pelas injustiças patrocinadas pela monarquia de Jeroboão. A terceira e quarta visões também são paralelas, e manifestam o juízo divino contra a casa de Jeroboão. Esta é a grandeza estatal do Reino do Norte, viabilizada pela religião. O santuário de Betel é focalizado (7.9 + v.10-17). Pois é ele que viabiliza a ideologia do estado de Israel, propagando uma religião que defende a causa dos opressores. Assim, a quinta visão é auge final do ciclo das visões, e descreve o próprio Javé derrubando o santuário de Betel.
Betel tem um profundo significado espiritual em Gêneses. “Betel” é a ‘casa de Deus”. É o lugar do encontro com Deus (Gn 28.1-19). Quando Jacó saiu de Betel, em Gn 28, ele era Jacó, o “usurpador”. Mas quando ele retornou para lá, em Gn 35, ele era “Israel”, aquele que “luta com Deus”, aquele que foi transformado pela graça de Deus (veja, em especial Gn 35.9-14). Mas, na época de Amós, Betel se transformara num “santuário do rei” (Am 7.13). De “casa de Deus”, passou a ser chamada de “santuário do rei”. De um lugar de encontro com Deus, Betel passou a ser um lugar a partir do qual o reinado de Jeroboão manipulava os empobrecidos camponeses. Na verdade, o “Israel, meu povo” (8.2), tornara-se em Jacó, o usurpador. O “Israel” que deveria ser aquele que fora transformado pela graça de Deus, é o Jacó antes do encontro com Deus e antes da construção do altar em Betel (Gn 35.9-14). Mas, o “Jacó pequeno”, mencionado nas duas primeiras visões, é o Israel verdadeiro, em potencial. É aquele a quem Deus perdoa! Por mais que exista um grupo que se denomine “Israel”, mas cujas atitudes não condizem com seu nome, Deus sempre se atentará para o pequeno Jacó, e fará dele o verdadeiro Israel de Deus (veja Am 9.14!).
A Igreja de Cristo deveria se atentar para esta palavra de Amós. Somos o povo de Deus, o Israel espiritual. Mas corremos o risco de se nos acomodarmos ao institucionalismo legalista e à religião manipuladora. Mas, seria bem melhor sermos o “Jacó pequeno”, aquele que carece da graça de Deus. Deveríamos ouvir a palavra de Jesus aos fariseus: “as prostitutas e os publicanos vos precedem no reino de Deus”.


BIBLIOGRAFIA

COELHO FILHO, Isaltino Gomes, Os profetas menores I – Oséias, Joel, Amós, Obadias e Jonas, Rio de Janeiro, Juerp, 2004, 160p.
DA SILVA, A. J., A Voz Necessária. Encontro com os Profetas do Século VIII a.C., São Paulo, Paulus, 1998.
DIAS LOPES, Hernandes. Amós – Um clamor pela justiça social, São Paulo, Hagnos, 2007, 215p. (Comentários Expositivos Hagnos).

JEREMIAS, Jörg, The book of Amos – a commentary, translated by Douglas W. Stott. Westminster John Knox, Louisville, 1998.188p. (Old Testament Library)
KIRST, Nelson. Amós – Textos selecionados, 2ª edição, São Leopoldo: Faculdade de Teologia – Igreja Luterana no Brasil, 1983.
REIMER, H., Amós - profeta de juízo e justiça, em CROATTO, J. S. et alii, Os Livros Proféticos: A Voz dos Profetas e suas Releituras, RIBLA 35/36 (2000/1/2), Petrópolis, Vozes/Sinodal, pp. 171-190.
SCHÖKEL, L. A. & SICRE DIAZ, J. L., Profetas II, São Paulo, Paulus, 2002.
SCHWANTES, Milton, A terra não pode suportar suas palavras“ (Am 7,10): reflexão e estudo sobre Amós, São Paulo, Paulinas, 2004.
SICRE, J. Luis, A Justiça Social nos Profetas, São Paulo, Paulus, 1990.
SICRE, J. Luis, Profetismo em Israel – Os Profetas, a Mensagem, Petrópolis, Vozes, 1996.
WOLFF, Hans Walter, Joel and Amos - A Commentary on the Books of the Prophets Joel and Amos, Philadelphia, Fortress Press, 1977, 396p.


[1] Nelson Kirst. Amós – Textos selecionados. 2ª edição. São Leopoldo: Faculdade de Teologia – Igreja Luterana no Brasil, 1983, p.42.
[2] Milton Schwantes, A terra não pode suportar suas palavras – reflexão e estudo sobre Amós, São Paulo, Paulinas, 2004, p.187.
[3] Milton Schwantes, A terra não pode suportar suas palavras – reflexão e estudo sobre Amós, p.187.

[4] Hernandes Dias Lopes, Amós – Um clamor pela justiça social, São Paulo, Hagnos, 2007, p.162 (Comentários Expositivos Hagnos).
[5] Milton Schwantes, A terra não pode suportar suas palavras – reflexão e estudo sobre Amós, p.190.
[6] Milton Schwantes, A terra não pode suportar suas palavras – reflexão e estudo sobre Amós, p.198.
[7] Nelson Kirst. Amós – Textos selecionados, p.67.
[8] Jörg Jeremias, The book of Amos – a commentary. Translated by Douglas W. Stott. Westminster John Knox, Louisville, 1998, p.130-133 (Old Testament Library).
[9] Jörg Jeremias, The book of Amos – a commentary, p.132.
[10] Hernandes Dias Lopes, Amós – Um clamor pela justiça social, p.165.
[11] Isaltino Gomes Coelho Filho, Os profetas menores I – Oséias, Joel, Amós, Obadias e Jonas. Rio de Janeiro, Juerp, 2004, p.99.
[12] Nelson Kirst. Amós – Textos selecionados, p.82.
[13] Nelson Kirst. Amós – Textos selecionados, p.89.
[14] Isaltino Gomes Coelho Filho, Os profetas menores I, p.100.
[15] Nelson Kirst. Amós – Textos selecionados, p.85.

A LITURGIA QUE AGRADA A DEUS

Miquéias 6.6-8

Pr Luciano R. Peterlevitz

INTRODUÇÃO
Normalmente quando falamos sobre liturgia, nós discutimos coisas que na verdade não tocam o cerne da liturgia. Discute-se, por exemplo, sobre tipos de liturgia: mais tradicional ou mais ‘renovada’? Com cânticos ou hinos? Qual o tipo de vestuário adequado para uma liturgia? Penso que, com tais discussões, somente nadamos na superfície. Não chegamos ao foco da liturgia que agrada a Deus.
Creio que uma leitura nos profetas nos proporciona bons parâmetros de uma liturgia ou de um culto que agrada a Deus. Quando lemos textos como esse de Miquéias, bem como os de Amós, Oséias e Isaias, normalmente vêm-nos à mente uma noção de culto, qual seja, Deus abomina uma adoração desassociada de nossa vida e de nosso caráter. Veja, por exemplo, Amós 5.14,21-24. Alguém já disse que o problema do povo de Israel não era a falta de culto, mas a falta de moralidade. O povo cultuava, mas em seu cotidiano praticava a injustiça e oprimia os fracos. Mas, muito mais do que celebração, o que Deus espera é um estilo de vida condizente com a Palavra de Deus. Então somos instigados a viver uma vida íntegra; não adianta se prostrar diante de Deus, e viver uma vida corrupta; não adianta dizermos que amamos a Deus em nossos cânticos se o pecado reina em nossas vidas; não adianta batermos palma em nossos cânticos se nosso coração não pulsa pela presença de Deus todos os dias; também não adianta dizermos que temos a liturgia correta, que cantamos os hinos tradicionais com letras profundamente teológicas, se ao decorrer da semana não temos temor a Deus.
De fato, tal leitura dos profetas é interessante e instiga-nos a uma nova postura diante de Deus. Entretanto, parece-me que, com essa leitura, ainda não atingimos o foco dos profetas. Mas mediante esse texto de Miquéias podemos fazer um bom exercício de entendimento sobre qual era o culto que Deus realmente deseja.
Mas antes de analisarmos o texto de Miquéias, é preciso fazer outra observação introdutória. Por uma simples leitura do verso 8 de Mq 6, percebemos que há três declarações: ‘pratiques a justiça’, ‘ames a misiricórdia’ e ‘andes humildemente com teu Deus’. Uma boa homilética requer que expliquemos as três sentenças em separado. Mas comparmentizar o verso seria prejudicial à compreensão da mensagem do profeta. Temos a mania de pensar nos valores do reino de Deus em compartimentos diferentes: amor é uma coisa, justiça é outra; andar com Deus é uma coisa, praticar a justiça é outra; liturgia é uma coisa, justiça social é outra. Ao meu ver, esse tipo de abordagem ensessa nossa compreensão do que é realmente o culto que agrada a Deus.


A LITURGIA E A PRÁTICA DA JUSTIÇA
Vejamos o que o texto diz: “que pratiques a justiça”. Aqui está o foco. Porque achamos que culto é uma coisa, e praticar a justiça é outra? O que tem haver liturgia com serviço ou com justiça social?
Atentemos para a definição do termo ‘liturgia’:
O vocábulo "Liturgia", em grego, formado pelas raízes leit- (de "laós", povo) e -urgía (trabalho, ofício) significa serviço ou trabalho público. Por extensão de sentido, passou a significar também, no mundo grego, o ofício religioso, na medida em que a religião no mundo antigo tinha um carácter eminentemente público (...) No princípio, a palavra não era utilizada para designar as celebrações dos cristãos, que entendiam que Cristo inaugurara um tempo inteiramente distinto do culto do templo. Mais tarde, o vocábulo foi adoptado, com um sentido cristão. (Wikipédia)
Aqui está o ponto importante. Originalmente liturgia era serviço. A noção de liturgia, entre os antigos gregos, se traduzia em trabalho público que beneficiava o povo de forma geral. Por exemplo, quando se fazia um multirão para se abrir uma estrada ou para se fazer qualquer benefício público, dizia-se que uma ‘liturgia’ foi realizada.
Entretanto, ao decorrer do tempo, liturgia passou a significar celebração. ‘Atos liturgicos’ foi reduzido à ordem seguida numa celebração cúltica.
Mas na verdade, na prática do serviço ao próximo estamos no cerne da liturgia. Voltamos assim à origem do termo ‘liturgia’. E a mensagem dos profetas alinha-se a essa idéia. Nos profetas (Miqueías, Amós, etc.), a prática da justiça é a própria liturgia. Mas o que significa isso, exatamente?
No AT, o “direito” (hebraico mixpat, “juízo”) são os suprimentos que a sociedade precisava prover aos pobres. Não era, pois, esmola. Aplicando aos nossos dias, o mixpat é o direito que os empobrecidos têm de receber da sociedade as coisas necessárias para sua existência: comida e terra. Assim, de acordo com Mq 6.8, andar humildemente com Deus implica num envolvimento em práticas sociais que possibilitem aos pobres o recebimento daquilo que lhes pertence por direito.
“O direito é o de obter da sociedade o apoio na necessidade e na crise, em meio aos parentes e à comunidade”, diz o Dr. Milton Schwantes. Este mesmo pesquisador pergunta sobre qual o significado dos pobres, na Bíblia. Diz ele: “O termo pobre é usado no Antigo Testamento e na Bíblia de modo diferente do que nós o usamos. Nós damos aos pobres o sentido de carentes. A Bíblia o entende como quem tem o direito de reivindicar os direitos sociais garantidos. Na tradição bíblica, um pobre não pede (não é pedinte), mas exige sua parcela da sociedade.”

A PRÁTICA DA JUSTIÇA E A NOSSA ESPIRITUALIDADE
O que tem haver, pois, nossa espiritualidade com a prática da justiça? O que tem haver o amor com justiça social? O que tem haver prática da justiça com nossa comunhão com Deus? Ora, tudo isso tem tudo a haver! Vejamos.
Ele praticou o direito e a justiça! E corria tudo bem para ele! Ele julgou a causa do pobre e do indigente. Então tudo corria bem. Não é isto conhecer-me? (Jr 22,15-16). Para este profeta, conhecer a Deus é praticar a justiça.
João, o ‘discípulo do amor’, afirma que a confissão de que Cristo “Ele é justo” implica num modo de agir no mundo: Se sabeis que ele é justo, reconhecei que todo aquele que pratica a justiça nasceu dele (1Jo 2,29). Assim, a prática da justiça é o sinal de nascimento em Deus.
Creio que com essas considerações em mente, podemos fazer uma nova leitura de Mateus 6.33. Sempre ouvi que buscar o ‘reino de Deus’ e a ‘sua justiça’ em primeiro lugar, significa dar prioridade às atividades da Igreja. Mas veja que o texto não diz ‘Igreja’, mas sim ‘reino de Deus’ e ‘sua justiça’.
O Reino de Deus está onde as coisas são exatamente do jeito como Deus quer que sejam. O que é, então, buscar o reino de Deus e a sua justiça? É lutar para que o pobre tenha dignidade. Não é só contribuir para a reestruturação de um país vítima de um terremoto, como no caso do Haiti, mas é lutar para que os habitantes daquele país tenham vida digna, e, à semelhança dos profetas bíblicos, denunciar os órgãos públicos ou nações que viabilizam a pobreza daquele país. Buscar o reino de Deus e sua justiça é lutar para que as crianças de rua e em situação de risco tenham direito à vida plena. Isso, e muito mais, é buscar o reino de Deus e sua justiça!
Lembremos das palavras do Senhor: todas as obras que fazemos aos ‘pequeninos’, fazemo-las para o próprio Senhor (Mt 25.31-46)!

CONCLUSÃO
Qual é a liturgia que agrada a Deus? É aquela que ora: “venha o teu reino, faça a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6.10). É aquela que pratica a religião verdadeira: visitar os órfãos e as viúvas (Tg 1.27). Liturgia é serviço ao próximo. A liturgia que Deus pede, diz Miquéias, é a prática da justiça social. Sem isso, é difícil dizer que andamos humildemente com Deus.