segunda-feira, 26 de setembro de 2011


Casa Grande

Gladir Cabral



A Casa Grande é branca e branda como a seda
Acolchoada, fina e nobre como a renda
Mas aqui fora reina a lei da reprimenda
Da palmatória, nossa praga, nossa prenda, ai, ai!
Doutores, caros, fortes, ricos e senhores
Que suspirais pela janela dos amores,
Rogai por nós, marcados por terríveis dores,
De vós vem nossas esperanças e temores...


Os nossos corpos sendo mortos pouco a pouco,
Os nossos sonhos já desfeitos, todos loucos...
Na Casa Grande há uma cruz numa parede...


No coração de um negro há uma Casa Nova,
Sem palmatória, sem corrente obrigatória,
Sem mais senhores, todos são, de todo, amigos
E nas paredes não há cristos esquecidos...
Nessa fazenda Deus é gente aproximada,
É dia inteiro, tarde, noite e madrugada,
Motivo, encontro, comunhão e caminhada,
Faz liberdade ser bem mais que uma palavra,
Ai, ai!

Os nossos corpos redimidos num momento
Bem mais veloz que a luz de todo pensamento...
A nossa Casa é muito mais que uma fazenda...

Ouça a música.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Amós - o profeta, o texto e o contexto

Luciano R. Peterlevitz


Revista Theos – Revista de Reflexão Teológica da Faculdade Teológica Batista de Campinas. Campinas: 7ª Edição, V.6 – Nº 01 – Julho de 2011. ISSN: 1980-0215.


Resumo

O profeta Amós é parte integrante da população campesina que se enveredava por um processo de empobrecimento. Este empobrecimento foi ocasionado pelas políticas usurpadoras dos direitos humanos, vigentes no antigo Israel em meados do século VIII a.C., promovidas pelo Estado de Jeroboão II, e enraizadas nos vilarejos do reino do Norte. Tais políticas fundamentavam-se na retirada extorsiva da produção camponesa, mediante o modo de produção denominado de tributarismo. Constata-se que, naquele cenário, a literatura do profeta surge na coletividade de um grupo social, no qual Amós estava inserido. O texto atribuído a Amós representa o protesto daquele grupo contra a opressão e as injustiças sociais patrocinadas pelo Estado de Israel. Assim, a situação humilhante do antigo Israel constitui-se a chave hermenêutica do livro de Amós.

Palavras-chave: Amós – Estado – tributarismo –literatura profética – profetismo.


Texto completo.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Opressão e Esperança - Êx 1.8 - 2.10


Pr Luciano R. Peterlevitz - Missão Batista Vida Nova, 11.09.2011


Êxodo 1.8 – 2.10


Introdução

1.1-7: introdução ao livro. Termina uma era: a de José (v.6). Inicia-se outra era: a da opressão (v.8).

Em 1.8 – 2.10, três cenas:

1.8-14: a efetivação da opressão sobre os hebreus.

1.15-22: os meninos são ameaçados.

2.1-10: um menino é ameaçado.

Haverá esperança para os meninos?



Opressões e ameaças

1.7: a bênção da fecundidade. Cumprimento da promessa divina (veja Gn 12.2: “te farei uma grande nação”). Mas, a partir do v.8, surge a ameaça. Com a benção surge a ameaça.

Os hebreus foram obrigados ao trabalho forçado. Fabricavam e carregavam matérias primas para as construções públicas do faraó (v.11-14). A vida era amarga (v.14). Eles trabalhavam gratuitamente em prol de projetos imperiais.

Todo o trabalho que não beneficia o trabalhador, mas só enriquece os poderosos, torna-se um esforço inútil.

Em 1.15-22, a ameaça se intensifica. A matança das crianças.

Em 2.1, nasce um menino! Seria uma ótima notícia, se não fosse o momento crítico: o menino nasce justamente quando o faraó ordenou a morte dos meninos. Será que Moisés nasceu num momento inoportuno?

No Egito, os filhos de Israel se multiplicaram. Benção ou maldição? Deus cumpre sua promessa, mas na hora errada?

Mas era o tempo de Deus manifestar esperança, através da vida de algumas mulheres.



Ameaças e esperanças

A esperança surge, como que uma flor em meio ao deserto.

As parteiras são canais de esperança (1.15-22). Elas poderiam ser egípcias (segundo Flávio Josefo; há outros bons comentaristas que apoiam essa idéia). A expressão “parteiras das hebréias”, no v.15, pode ser traduzida assim: “aquelas que ajudam as hebréias a darem a luz”.

As parteiras egípcias temeram a Deus. O problema não era o Egito. O problema era o sistema mortífero tramado por faraó.

As parteiras desobedeceram ao poderoso faraó. Preferiram temer a Deus. Nos v.18-19, estamos diante de um cenário curioso: faraó, o dono do mundo, conversando com duas parteiras. A cena é hilária! O texto ‘tira sarro’ do faraó!

O faraó é vulnerável. Seu plano é frustrado. Prevalece a sabedoria das parteiras. O faraó é monstro. Não tem nome. No livro dos Nomes (lembre-se: esse é o titulo do livro no hebraico: xemot, “nomes”), o opressor não tem nome!Diferente das parteiras: Sifrá, “bela”, Puá, “menina”. A beleza e a meninice das parteiras vão desfazendo o poder opressor do faraó. Quando perguntadas por que desobedeceram a ordem faraônica, elas disseram (v.19): as hebréias são cheias de vida (ki-hayot hennah, “porque elas são cheias de vitalidade”, ou “por causa da vitalidade delas”. Hayot é o plural de hayeh, “cheio de vitalidade”, “vital”, “forte”). A morte engendrada pelo poderoso faraó não pôde vencer a vida deparada nas escravas! O poder do faraó não pode deter o poder da vida. Tanto que nelas, nas parteiras, a vida superabundou (v. 20)! Em meio à opressão, a vida sobrepujou-se (veja 1.12).

A situação está difícil. Olhe para a vida. Olhe para o Deus da vida. Se o desespero bater, ouça as batidas do seu coração. A vida pulsa em você. Você está respirando. Não desista.

Em 1.22, a ameaça do faraó se intensifica ainda mais. Os meninos deveriam ser jogados no rio.

Mas a filha do faraó é canal de esperança (2.1-10). Nasce um menino, da tribo de Levi. Era “formoso / belo”. Mesmo em meio às ameaças e opressões, a beleza de uma criança sobressai-se! A beleza é capaz de subverter!

A filha do faraó não era igual ao faraó. Ela comoveu-se pelo choro da criança (2.6). É o único texto da Bíblia que se refere ao ‘choro’ de uma criança. Aliás, nesse v.6, o choro da criança é marcante:


E abriu,

e viu o menino.

Eis que a criança chorava,

e teve compaixão dela.

E disse:

este é o menino dos hebreus.



Nas duas primeiras frases, a filha do faraó abre o cesto e vê o “menino”. Nas duas frases seguintes, a compaixão da princesa, em virtude do choro da criança. Só no final está a constatação: “este é o menino dos hebreus”. É o choro da criança, e não sua raça, que causa comoção na filha do faraó! O choro da criança transcende a raça. O clamor dos meninos sempre será ouvido (veja Gn 21.8-21, o choro da escrava egípcia e o grito de Ismael!).

Existem opressões? Infelizmente sim. Mas, Deus sempre levantará uma Sifrá e uma Puá para salvar os meninos do poder da morte. Seja pelas mãos de simples parteiras, ou seja da através de uma princesa, o choro dos meninos sempre será ouvido.

E surge Moisés, no v.10! Em meio a tantos meninos sem nomes, o livro dos Nomes (Êxodo), refere-se a um nome: “Moisés”, tirado das águas.

O rio era instrumento de morte. Mas, do rio surgiu Moisés, o libertador do Egito. Seu nome também é um anúncio profético: aquele que foi tirado das águas, mais tarde libertará seu povo do poder das águas do grande mar. Moisés é um milagre. O Deus da vida tirou Moisés do rio através das mãos de uma egípcia.



Jamais se esqueça: a sua vida também é um milagre. No Deus da vida “vivemos, nos movemos e existimos.”

Num cenário tão difícil, Deus levanta fagulhas de esperança: Sifrá, Puá, Moisés.

Num mundo quebrado como o nosso, você também pode encontrar esperança. E você mesmo pode ser uma faísca de esperança!

Quem é o meu próximo? – A Igreja como comunidade do amor


Pr Luciano R. Peterlevitz – 2º Aniversário da Congregação do Parque Oziel, 11.09.2011

Leia Lucas 10.25-37

No v.25 lemos que o ‘doutor da lei’ levantou-se para pôr Jesus à prova. Ele se ocupava com o estudo do Pentateuco. Era um perito em religião. Sua pergunta para Jesus: como obter a vida eterna? Jesus o arremete para aquilo que ele mais conhecia, a saber, a lei (v.26). O doutor então cita a shemá, tida pelos judeus como o ‘coração da lei’ judaica (v.27; Dt 6.4-5). Mas o curioso é que Jesus não responde a pergunta do doutor da lei, que indagou sobre como conseguir a salvação. Ao contrário, Jesus mostra como evidenciarmos que somos salvos. O doutor queria saber como conquistar a vida eterna. Jesus mostra como evidenciar a vida eterna na relação com o próximo. Por isso, disse: ‘faze isso e viverás’ (v.28).

O doutor da lei sabia o que significava o amor na lei de Moisés (v.27!). Mas ele não sabia o que significava o amor na prática cotidiana. “Faze isso e viverás”, disse Jesus.

Então chegamos ao v.29. A pergunta sobre como obter a vida eterna (v.25) necessariamente leva à outra pergunta: Quem é o meu próximo? É impossível falar de vida eterna sem falar do ‘próximo’. O doutor da lei quer saber quem exatamente ele deve amar. Para responder essa pergunta, Jesus conta uma parábola. Nela vemos duas perspectivas do ‘próximo’.


O próximo na perspectiva do sacerdote e do levita

Um homem que descia de Jerusalém para Jericó foi vitimado por assalto seguido por espancamento; estava caído no caminho. Por ali passaram dois peritos em religião: o sacerdote e o levita. Desviaram-se da vítima. Preocupavam-se com uma coletânea de regras religiosas. Esqueceram que viver no reino de Deus é viver no amor de Deus, e isso significa liberar amor àquele que está caído no caminho. Para o sacerdote e para o levita, o próximo era alguém que estava perto, seus conhecidos; talvez, seus colegas do templo. Para os peritos em religião, aquele estranho caído no caminho não era o próximo deles.

O principal problema dos dois religiosos não era a falta de compromisso, mas sim, o excesso de compromisso. Diz o texto que o sacerdote ‘descia pelo mesmo caminho’ (v.31). Que caminho? Ora, o mesmo caminho que descia aquele que foi espancado pelos ladrões, a saber, o caminho entre Jerusalém e Jericó (v.30). O sacerdote e o levita voltavam de seus compromissos religiosos de Jerusalém. Provavelmente tinham ido ao templo oferecer algum sacrifício. Nem podiam alegar que não tinham tempo, pois já tinham cumprido seus rituais. Mas eles se esqueceram daquilo que Deus disse: “misericórdia quero, e não sacrifícios” (Os 6.6).

Os religiosos estavam comprometidos com uma crença, não com o próximo. Aí reside o problema. Na perspectiva deles, o compromisso com uma religião era mais importante do que o compromisso com o próximo.

Eis nosso risco: estarmos comprometidos com os preceitos e doutrinas referentes à vida eterna, mas não evidenciarmos a vida eterna em nós através de um compromisso com o próximo. Será que não estamos comprometidos sobremaneira com nossas estruturas eclesiásticas a ponto de não restar tempo para o compromisso com a causa do próximo?

Há, ainda, outra pergunta que precisamos refletir: será que o pobre não se tornou uma ameaça, ao invés de ser objeto de compaixão?

Mia Couto, em O Assalto, diz: “No meu tempo de menino tínhamos pena dos pobres. Eles cabiam naquele lugarzinho menor, carentes de tudo, mas sem perder humanidade. Os meus filhos, hoje, têm medo dos pobres. A pobreza converteu-se num lugar monstruoso. Queremos que os pobres fiquem longe, fronteirados no seu território.”

Essa era a perspectiva do próximo do sacerdote e do levita. O ‘próximo’, para eles, eram aquelas pessoas boas, praticante da religião deles. Aqueles que estavam caídos, semi-mortos, eram uma ameaça ao rompimento de seus compromissos religiosos. Por que perder tempo com essa gente caída pelo caminho?


O próximo na perspectiva do samaritano

E o samaritano? Qual sua perspectiva do próximo? Veja os v.33-35. O samaritano estava em “viagem” (v.33). Não voltava de nenhum compromisso religioso. Mas, vendo o homem caído à beira do caminho, agiu com compaixão. Muito mais do que isso. Fez-lhe algo. Recolheu aquele que estava caído. Cuidou dele. Dispôs-se a fazer tudo o que aquele viajante machucado precisava.

Eis o princípio que aprendemos: precisamos pregar o evangelho todo para todo o homem e para o homem todo. Não é só pregar todo o evangelho (o evangelho completo, em todos os seus aspectos). Não é só pregá-lo para todos os homens. É, também, pregá-lo para o homem todo. O evangelho não é só para a salvação da ‘alma’. O evangelho é salvação para o homem, em sua totalidade.

O samaritano levou o viajante desconhecido a uma hospedaria. Tinha outros compromissos. Por isso deixou ali dois denários (o pagamento de um dia de trabalho), para seguir sua viagem. Voltaria, no entanto. Pagaria mais, se precisasse.

A questão não é anular nossos compromissos. Mas não podemos ir caminhando com nossos compromissos e esquecer-nos daqueles que agonizam no caminho.

Quem o nosso próximo? Essa é a questão no v.29. Jesus mostra que o ‘próximo’ não se restringe a alguém que está perto. É, nessa parábola, alguém que precisa da nossa ajuda. É, inclusive, um desconhecido.

Mas, no v.36, a questão quem é meu próximo? é definitivamente respondida. Nós é que somos o próximo! A questão não era “quem é meu próximo?”. Mas: “de quem sou próximo?”. Porque o próximo só vai ser próximo se nós nos aproximarmos. O samaritano se aproximou daquele que estava caído.

Esse é o nosso desafio: tornar-nos próximos daqueles que estão longe. Precisamos ir perto dos que estão longe.

O cristão e o trotskista, presos por Stálin, na Sibéria. O cristão cobria aquele homem com seu cobertor. Dava dois terços de sua ração àquele homem. Carregava aquele homem para tomar sol. O sujeito perguntou ao cristão: Jesus é igual você? O cristão respondeu: Não, Ele é muito melhor! O sujeito respondeu: Porque se Ele for simplesmente igual a você eu quero conhecê-lo!

Certa vez, um professor universitário hindu na Índia, ao identificar que um de seus alunos era cristão, disse-lhe: “Se vocês, cristãos, vivessem como Jesus Cristo viveu, a Índia estaria aos seus pés amanhã mesmo”. Eu penso que a Índia já estaria aos seus pés hoje mesmo se os cristãos vivessem como Jesus viveu. Oriundo do mundo islâmico, o Reverendo Iskandar Jadeed, árabe e ex-muçulmano, disse: “Se todos os cristãos fossem cristãos — isto é, semelhantes a Cristo —, hoje o islã não existiria mais”.

O mal prospera quando os bons estão de braços cruzados. “Cristo morreu de braços abertos, será que podemos viver uma vida espiritual de braços cruzados?” (Keith Green)


Conclusão

Ouvimos hoje o eco das palavras de Jesus: “vai e faze o mesmo”.

Alguém já disse que os assaltantes tomaram posse do que não lhes pertencia. A filosofia deles era: “O que é seu, é meu”. Já o sacerdote e o levita demonstraram egoísmo; para eles, o “eu” era o centro de tudo. Através de suas atitudes, disseram: “O que é meu, é meu”. Mas, a atitude do samaritano foi diferente. Ele demonstrou altruísmo. A filosofia dele era: “O que é meu, é teu”.


“Quando se perde a fé em Deus já não se pode crer no homem. O cristianismo exige a fé não somente em Deus, senão também no homem; é a religião do Deus-Homem... “

BERDIAEFF, Nicolas.


Quem é o nosso próximo? Não é somente alguém que conhecemos. É alguém que precisa de nós; alguém que está longe, de quem precisamos nos aproximar.