sexta-feira, 15 de julho de 2011

Deus no Profano


Luciano R. Peterlevitz


Era quinta feira, véspera da morte de Jesus. Antes de morrer, o Senhor se reúne com os doze homens, com os quais compartilhou sua vida durante aproximadamente três anos. Reunidos, sentam-se à mesa. Comem juntos. Era um jantar. Um momento informal, um jantar destinado a se tornar o memorial do cristianismo. O texto bíblico simplesmente diz que eles sentaram e comeram. Sabemos que a ceia judaica era um jantar, à semelhança dos nossos jantaras, quando nos assentamos com as pessoas queridas e compartilhamos com elas as nossas vidas.

Para aquele momento, não ensaiaram nenhum hino. Não preparam nenhuma ordem de culto. Não vestiram roupas novas, ou ‘roupas de igreja’. Não havia grupo de louvor, nem coral. Tampouco havia bancos, nem púlpito (ou, como preferem alguns, “tribuna”).

Simplesmente sentaram-se para comer. E ali, naquele momento informal, Jesus diz que o vinho que bebiam era seu sangue, e o pão que comiam era o seu corpo. A seguir, cantaram um hino.

Mas eis a questão: aquele momento ‘sagrado’ era um momento profano. Uma janta! Não era um ‘culto’. Não foi oficiado num lugar sagrado.

A religião afirma que o sagrado não se concilia com o cotidiano. Segundo as Ciências da Religião, o sagrado é o anormal, especial, do outro mundo, o tabu. Já o profano seria o normal, quotidiano, deste mundo, plebeu e permitido. O que há de característico nas grandes religiões mundiais é que todas elas articulam seus símbolos a partir de duas dimensões: a sagrada e a profana. Elas veneram Deus/deus num altar, num espaço sagrado. O ofertante vai a algum lugar, e ali oferece algo à divindade. O altar é sagrado. Ali o religioso está numa outra dimensão, a sagrada, e é ali, tão somente ali, que ele experimenta o divino. Quando termina de ofertar, o ofertante deixa deus no altar para seguir sua caminhada cotidiana e profana. A caminhada profana é uma coisa. O altar e o deus do/no altar é outra. Assim, o sagrado é a dimensão da experiência religiosa.

Nessa perspectiva, o profano é o mundo em que vivemos. O mundo ou o cotidiano no qual vivemos é, na ótica das religiões, banal e inferior em relação ao sagrado.

Mas Jesus propõe uma relação totalmente radical com o verdadeiro Deus. O momento mais sagrado do cristianismo é Ceia do Senhor. E essa originalmente foi uma janta! Pois comer é compartilhar. Aliais, o verbo “comer”, em português, resulta da combinação do verbo latim edere, em que ed é o radical, e o prefixo cum que significa companhia. Assim ‘comer’ evoca companhia. É a idéia de comunhão. Essa é a proposta da Ceia do Senhor, ou seja, o partilhar de um mesmo pão e um mesmo vinho! O esse momento ‘sagrado’ se consumou num momento ‘profano’, numa janta.

Qual a conclusão de tudo isso? Ora, no cristianismo não existe “momentos espirituais”. A espiritualidade é a vida! A espiritualidade não se manifesta num determinado dia e lugar. Aliás, a espiritualidade não é algo desassociado da existência cotidiana ou ‘profana’. No cristianismo, o templo não é um lugar. O templo somos nós mesmos. Mas infelizmente as pessoas associam o culto cristão ao culto pagão. Acham que podem encontrar Deus numa determinada hora e lugar, num espaço sagrado. E após esse ‘momento espiritual’, deixam Deus sobre o altar e seguem sua caminhada cotidiana.

Mas Deus não está num determinado lugar. Ele está em nossas vidas. O altar não é algo. O altar é alguém! O altar sagrado são as nossas vidas. A espiritualidade é a manifestação do nosso ser, no cotidiano.

Deus não mendiga o nosso ‘culto’. Ele não quer ‘algo’ de nós num determinado dia e lugar. Ele nos quer todo dia, o dia todo, e em todo lugar.

Quando esteve aqui, o lugar que Jesus menos freqüentou foi templo. Preferiu os desprestigiados da sociedade. Por isso foi chamado de ‘glutão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores!” (Mt 10.19). Esteve no profano. Manifestou Deus no profano. Portanto, agredindo os preconceitos religiosos das religiões, está a afirmativa cristã de que Deus está no profano.

Nossas experiências cotidianas são tão sagradas quanto aquilo que hoje em dia chamamos de ‘culto’. Não me entendam mal. Não estou depreciando a importância da reunião cristã de adoração. Estou questionando se esse momento é o momento espiritual. Pois, à luz da primeira Ceia do Senhor, percebe-se que ao redor de uma mesa, enquanto tomamos em café ou chá, conversando, contando piadas, trocando idéias, ali, experimentamos Deus. Ali, quando choramos ou rimos juntos, com alguém que precisa do nosso choro ou do nosso riso. Nessas experiências ‘profanas’ (cotidianas) experimentamos Deus. Pois creio que Deus no ali e no aqui. Ele está no profano! Graças a Deus!

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