Carta escrita pelo Pr Luciano R.
Peterlevitz aos pastores, realçando a importância do aprimoramento dos
processos de interpretação bíblica.
1Coríntios 11.29: pois quem
come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe juízo para si. (Ameida Revista e Atualizada).
Estimados colegas
pastores,
Creio que todos nós
estamos conscientes que uma das tarefas fundamentais do ministro cristão é a
pregação da Palavra de Deus. Quão grande responsabilidade foi-nos concedida!
Somos arautos da verdade. A Palavra de
Deus (sua voz e Sua vontade) é manifesta mediante a pregação que nos foi
confiada pelo mandato de Deus, nosso Salvador (Tt 1.3). Acreditamos que, para a
excelência do exercício da pregação, precisamos constantemente buscar
ferramentas que auxiliem na preparação de mensagens. Por isso escrevo esta
carta. Para realçar que nós (inclusive eu!), como intérpretes da Palavra,
precisamos aprimorar os processos de interpretação bíblica.
No momento, estou
envolvido na preparação de uma apostila sobre Hermenêutica Bíblica, para o
curso de Teologia da Faculdade Teológica Batista de Campinas. Estou lendo e
relendo algumas obras sobre o assunto, e redescobrindo a importância da
hermenêutica para a preparação das minhas mensagens e estudos. Isso tem sido
grande benção na minha vida. Uma das obras lidas por mim é Hermenêutica: uma abordagem multidisciplinar da leitura bíblica (São
Paulo, Shedd Publicações, 2012), tendo Elmer Dyck como editor. Trata-se de uma
coletânea de textos, cada qual enfocando aspectos importantes do processo de
interpretação do texto bíblico. Um dos textos foi escrito por Gordon D. Fee[1]: “A
história como contexto para a Interpretação”, p.11-35. Em um dos momentos do
texto, mostrando a importância da análise do conteúdo no processo exegético e
hermenêutico, Fee oferece uma interpretação sobre 1Co 11.29.
Achei oportuno
compartilhar com os irmãos a interpretação de Fee sobre 1Co 11.29. Meu objetivo
nesta carta não é reafirmar ou analisar criticamente a interpretação do autor. A
presente carta constitui-se simplesmente anotações sobre a interpretação de Fee
sobre 1Co 11.29, cabendo aos colegas analisarem se tal interpretação possui
fundamentação adequada.
Antes da interpretação
do texto bíblico supracitado, Gordon D. Fee aborda diversas outras premissas do
processo de interpretação de um texto bíblico, que reclamam insistentemente o
direito de serem relembradas por nós, intérpretes da Palavra.
Gordon D. Fee primeiramente
justifica a necessidade da hermenêutica. A hermenêutica é necessária, já que é
impossível ler as Escrituras sem a interpretação. Outra razão da hermenêutica
apresentada por Fee diz respeito à natureza das Escrituras. Ora, um pressuposto
fundamental para a instrumentalização da hermenêutica é a afirmativa de que as
Escrituras possuem dupla autoria, a divina e a humana. Ou seja, em última
instância o Autor da Bíblia é Deus, já que o Espírito Santo impeliu os santos
profetas e apóstolos para falarem em nome de Deus; por outro lado, a revelação
divina foi necessariamente expressa em linguagem humana e foi mediada pela
história humana em contextos bastante particulares. “Isto é: assim como cremos
que nosso Salvador é, ao mesmo tempo, tanto humano quanto divino, assim também
acreditamos que Escritura é ao mesmo tempo, humana e divina.” (p.14). Portanto,
a Bíblia é a Palavra de Deus revelada através de homens, no decorrer da
história.
Isso significa que,
para a correta interpretação da Bíblia, existem alguns elementos que auxiliam a
interpretação da Escritura: 1) conhecimento das línguas bíblicas (hebraico,
aramaico e grego); 2) conhecimento da cultura dos autores e dos leitores
originais da Bíblia; e 3) conhecimento do contexto histórico e geográfico da
Bíblia.
É por essa razão que as
perguntas sobre o contexto do texto
são fundamentais, no processo de interpretação. Ao tratar sobre o contexto, o
intérprete responderá às seguintes questões: 1) quanto ao gênero: qual é o tipo
de literatura? Narrativa, poesia, profecia, parábola, epístola?; 2) quanto ao
contexto histórico: qual o pano de fundo histórico cultural?; 3) quanto ao
contexto literário: qual o significado do versículo ou palavra no contexto dos
versículos que vem antes e depois, e no contexto do livro onde está inserido o
versículo ou palavra? Após as perguntas sobre o contexto, Fee salienta que o
intérprete precisa perguntar pelo conteúdo:
significado lexicográfico (o que essas palavras significam nesse contexto
específico?); significado gramatical (como essas palavras se relacionam umas
com as outras?); pano de fundo histórico (quais alusões ou pressuposições
históricas existem por detrás dessas palavras?).
A partir destes
instrumentais hermenêuticos, Gordon D. Fee se propõe a analisar 1Co 11.29. Após
uma interessante interpretação de 1Co 3.16-17[2] ,
Fee analisa 1Co11.29 a partir das questões contextuais. Duas questões orientam
sua análise: 1ª) qual significado da palavra ‘corpo’? Seria o corpo crucificado
de Cristo ou a igreja?; 2ª) qual o significado do verbo diakrino, “discernir, reconhecer, ou julgar corretamente”?
Vamos ao texto, por
três traduções:
Pois quem come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe juízo para si. (Ameida Revista e Atualizada).
Porque o que come e bebe
indignamente come e bebe para sua própria condenação, não discernindo o corpo
do Senhor (Revista e Corrigida).
Pois quem come e bebe sem ter
consciência do corpo do Senhor, come e bebe para sua própria condenação. (Ameida Século XXI).
Observa-se que a RC e a
Almeida Século XXI adicionam “do
Senhor” à palavra “corpo”. A ARA, por sua vez, simplesmente traduz “corpo”, sem
nenhum qualificador, conforme o texto grego.
Nos v.24 e v.27 o
“corpo” notadamente é o corpo crucificado de Jesus. Fee faz duas considerações
a respeito do uso da palavra ‘corpo’ no v.29, à luz do contexto imediato
(p.29). Primeira: é a primeira vez que a palavra ‘corpo’ é usada sem o
qualificador (meu corpo; corpo do Senhor). Segunda: o corpo é
mencionado, no v.29, sem relação ao cálice ou ao sangue.
À luz dos v.21 e v.22,
pode-se constatar que a Ceia era um tipo de refeição particular usufruída pelos
ricos em detrimento dos pobres. Alguns comiam opulentamente, enquanto outros
não tinham o que comer. De acordo com o v.21, a ceia de Corinto não era a ‘Ceia
do Senhor’ (v.20), mas uma ceia particular (idion
deipnon, “própria ceia”, uma refeição muito particular). Assim, as divisões
apontadas no v.18 certamente têm bases sociais. Fee indaga: “o que está por
detrás de tudo isso? Como devemos entender o modo de os coríntios abusarem a
mesa do Senhor?” (p.31). O autor recorre ao contexto histórico-cultural para responder
essas questões e esclarecer o real sentido dessa passagem bíblica.
“Sabemos que as igrejas
primitivas se reuniam em casas, e que muitas vezes as casas eram de estilo
romano com os próprios cômodos formando um tipo de retângulo em derredor de um
pátio aberto chamado átrio. Um dos cômodos chamado triclínio (reclinando-se em
três lados de uma mesa) era a sala do jantar. Também sabemos, pela arqueologia
de Corinto, que não existiam casas – ou pelo menos não foi descoberta nenhuma –
em que mais de doze pessoas podiam ter se reclinado confortavelmente no
triclínio. Se o triclínio estava sendo usado para essas refeições aludidas por
Paulo, somente um grupo seleto podia ter sido admitido, e as demais pessoas
teriam ficado lá fora, no átrio.” (p.31-32).
Fee salienta que a
expressão “sua própria ceia” (v.21) pode estar relacionada com uma prática
comum do mundo greco-romano, conhecida por textos de antigos escritores: o
anfitrião selecionava os hóspedes mais importantes, e para eles servia uma
refeição privilegiada, enquanto que outros hóspedes eram divididos em
subcategorias, e para cada categoria era servida um tipo de refeição. Quanto
mais importante era o hóspede, mais requintada era a comida. Fee cita dois
escritores antigos (Marcial e Plínio, o velho), que fazem referência a essa
prática.
Gordon D. Fee acredita
que é algo desse tipo que é condenado por Paulo, em 1Co 11.29. O autor imagina
que os ricos celebravam “sua própria ceia”, no triclínio, “ao passo que a
maioria composta por certo de escravos ou de libertos pobres (cf. 1.26) eram
basicamente excluídos da refeição dos outros e, portanto, eram excluídos da
própria mesa do Senhor” (p.33).
Nesse contexto, não
“discernir” o corpo significa não reconhecer o corpo de Cristo (a igreja) como
um espaço igualitário, onde as diferenciações entre ricos e pobres inexistem.
“Deixar de discernir assim o corpo e abusar dos de categoria social inferior é
incorrer no juízo divino”, diz Fee (p.34).
O autor não ignora a
referência ao sangue e ao corpo crucificado do Senhor. Isso porque o sangue de
Jesus produz um efeito vertical e horizontal: aproxima-nos de Deus,
verticalmente, e nos aproxima do próximo, horizontalmente.
Na verdade, o que Fee pretende
demonstrar, a partir da interpretação de passagens de 1Corintios (aqui
ressaltamos sua interpretação de 1Co 11.29), é que “a história é o primeiro
contexto para a interpretação” (p.35). Ou seja, a interpretação precisa levar
em conta o pano de fundo histórico-cultural do texto, e necessariamente precisa
anteceder à aplicação.
Podemos discordar da
interpretação de Gordon D. Fee sobre 1Co 11.29. Mas creio que todos nós concordamos
no principal argumento do autor: para a correta interpretação e aplicação da
Palavra de Deus em nossos dias, é preciso considerar seriamente as
particularidades dos textos bíblicos em seus contextos históricos, literários e
teológicos.
O texto de Gordon D.
Fee e os demais artigos do livro
Hermenêutica: uma abordagem multidisciplinar da leitura bíblica
enriqueceram sobremaneira meus instrumentais hermenêuticos. Por isso,
recomendo-os aos estimados colegas. Abaixo também alisto outras obras de
hermenêutica bíblica, que também poderão contribuir para o aprimoramento de
suas pregações.
Na paz de Cristo,
Pr
Luciano R. Peterlevitz
BIBLIOGRAFIA
DE HERMENÊUTICA BÍBLICA
BERKHOF, Louis. Princípios de interpretação bíblica. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista,
1965.
CARSON, D.A. Os
Perigos da Interpretação Bíblica. 2ª
edição. São Paulo:
Edições Vida Nova, 2001.
DYCK, Elmer (editor). Hermenêutica: uma abordagem
multidisciplinar da leitura bíblica. São
Paulo: Shedd Publicações, 2012.
GRUDEM, Wayne; COLLINS, C. John;
SCHREINER, Thomas R. Origem,
confiabilidade e significado da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 2013.
HENRICHSEN, Walter A. Princípios de interpretação bíblica. 3ª
edição. São Paulo: Editora Mundo
Cristão, 1986.
KAISER, Walter C.; SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica Bíblica: Como
ouvir a Palavra de Deus apesar dos ruídos de nossa época. São Paulo: Editora
Cultura Cristã, 2002.
LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes: uma breve
história da interpretação. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
LUND, E. & NELSON, P. C. Hermenêutica: Princípios de interpretação
das Sagradas Escrituras. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Vida Nova,
2006.
OSBORNE, Grant R. A
espiral hermenêutica: uma nova
abordagem à interpretação bíblica.
São Paulo: Vida Nova, 2009.
ZUCK, Roy B. A interpretação Bíblia. São Paulo: Vida
Nova, 1994.
[1] Autor conhecido por outra obra
publicada em português: Entendes o que
lês? (Edições Vida Nova), em parceria com Douglas Stuart.
[2]
Segundo Fee, em 1Co 3.16-17 o ‘santuário de Deus’ não é uma referência à
destruição do corpo individual do cristão; antes, ‘santuário de Deus’ é a
igreja como coletividade, que no contexto da epístola de 1Co estava sendo
destruída pela sabedoria humana sobreposta à mensagem da cruz e pelas contentas
de alguns membros de Corinto contra seus líderes – Paulo e Apolo).
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