quinta-feira, 4 de julho de 2013

1CO 11.29: A INTERPRETAÇÃO DE GORDON D. FEE




Carta escrita pelo Pr Luciano R. Peterlevitz aos pastores, realçando a importância do aprimoramento dos processos de interpretação bíblica.

1Coríntios 11.29: pois quem come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe juízo para si. (Ameida Revista e Atualizada).

Estimados colegas pastores,

Creio que todos nós estamos conscientes que uma das tarefas fundamentais do ministro cristão é a pregação da Palavra de Deus. Quão grande responsabilidade foi-nos concedida! Somos arautos da verdade.  A Palavra de Deus (sua voz e Sua vontade) é manifesta mediante a pregação que nos foi confiada pelo mandato de Deus, nosso Salvador (Tt 1.3). Acreditamos que, para a excelência do exercício da pregação, precisamos constantemente buscar ferramentas que auxiliem na preparação de mensagens. Por isso escrevo esta carta. Para realçar que nós (inclusive eu!), como intérpretes da Palavra, precisamos aprimorar os processos de interpretação bíblica.  
No momento, estou envolvido na preparação de uma apostila sobre Hermenêutica Bíblica, para o curso de Teologia da Faculdade Teológica Batista de Campinas. Estou lendo e relendo algumas obras sobre o assunto, e redescobrindo a importância da hermenêutica para a preparação das minhas mensagens e estudos. Isso tem sido grande benção na minha vida. Uma das obras lidas por mim é Hermenêutica: uma abordagem multidisciplinar da leitura bíblica (São Paulo, Shedd Publicações, 2012), tendo Elmer Dyck como editor. Trata-se de uma coletânea de textos, cada qual enfocando aspectos importantes do processo de interpretação do texto bíblico. Um dos textos foi escrito por Gordon D. Fee[1]: “A história como contexto para a Interpretação”, p.11-35. Em um dos momentos do texto, mostrando a importância da análise do conteúdo no processo exegético e hermenêutico, Fee oferece uma interpretação sobre 1Co 11.29.
Achei oportuno compartilhar com os irmãos a interpretação de Fee sobre 1Co 11.29. Meu objetivo nesta carta não é reafirmar ou analisar criticamente a interpretação do autor. A presente carta constitui-se simplesmente anotações sobre a interpretação de Fee sobre 1Co 11.29, cabendo aos colegas analisarem se tal interpretação possui fundamentação adequada.
Antes da interpretação do texto bíblico supracitado, Gordon D. Fee aborda diversas outras premissas do processo de interpretação de um texto bíblico, que reclamam insistentemente o direito de serem relembradas por nós, intérpretes da Palavra.
Gordon D. Fee primeiramente justifica a necessidade da hermenêutica. A hermenêutica é necessária, já que é impossível ler as Escrituras sem a interpretação. Outra razão da hermenêutica apresentada por Fee diz respeito à natureza das Escrituras. Ora, um pressuposto fundamental para a instrumentalização da hermenêutica é a afirmativa de que as Escrituras possuem dupla autoria, a divina e a humana. Ou seja, em última instância o Autor da Bíblia é Deus, já que o Espírito Santo impeliu os santos profetas e apóstolos para falarem em nome de Deus; por outro lado, a revelação divina foi necessariamente expressa em linguagem humana e foi mediada pela história humana em contextos bastante particulares. “Isto é: assim como cremos que nosso Salvador é, ao mesmo tempo, tanto humano quanto divino, assim também acreditamos que Escritura é ao mesmo tempo, humana e divina.” (p.14). Portanto, a Bíblia é a Palavra de Deus revelada através de homens, no decorrer da história.
Isso significa que, para a correta interpretação da Bíblia, existem alguns elementos que auxiliam a interpretação da Escritura: 1) conhecimento das línguas bíblicas (hebraico, aramaico e grego); 2) conhecimento da cultura dos autores e dos leitores originais da Bíblia; e 3) conhecimento do contexto histórico e geográfico da Bíblia.
É por essa razão que as perguntas sobre o contexto do texto são fundamentais, no processo de interpretação. Ao tratar sobre o contexto, o intérprete responderá às seguintes questões: 1) quanto ao gênero: qual é o tipo de literatura? Narrativa, poesia, profecia, parábola, epístola?; 2) quanto ao contexto histórico: qual o pano de fundo histórico cultural?; 3) quanto ao contexto literário: qual o significado do versículo ou palavra no contexto dos versículos que vem antes e depois, e no contexto do livro onde está inserido o versículo ou palavra? Após as perguntas sobre o contexto, Fee salienta que o intérprete precisa perguntar pelo conteúdo: significado lexicográfico (o que essas palavras significam nesse contexto específico?); significado gramatical (como essas palavras se relacionam umas com as outras?); pano de fundo histórico (quais alusões ou pressuposições históricas existem por detrás dessas palavras?).
A partir destes instrumentais hermenêuticos, Gordon D. Fee se propõe a analisar 1Co 11.29. Após uma interessante interpretação de 1Co 3.16-17[2] , Fee analisa 1Co11.29 a partir das questões contextuais. Duas questões orientam sua análise: 1ª) qual significado da palavra ‘corpo’? Seria o corpo crucificado de Cristo ou a igreja?; 2ª) qual o significado do verbo diakrino, “discernir, reconhecer, ou julgar corretamente”?
Vamos ao texto, por três traduções:
Pois quem come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe juízo para si. (Ameida Revista e Atualizada).
Porque o que come e bebe indignamente come e bebe para sua própria condenação, não discernindo o corpo do Senhor (Revista e Corrigida).
Pois quem come e bebe sem ter consciência do corpo do Senhor, come e bebe para sua própria condenação. (Ameida Século XXI).

Observa-se que a RC e a Almeida Século XXI adicionam “do Senhor” à palavra “corpo”. A ARA, por sua vez, simplesmente traduz “corpo”, sem nenhum qualificador, conforme o texto grego.
Nos v.24 e v.27 o “corpo” notadamente é o corpo crucificado de Jesus. Fee faz duas considerações a respeito do uso da palavra ‘corpo’ no v.29, à luz do contexto imediato (p.29). Primeira: é a primeira vez que a palavra ‘corpo’ é usada sem o qualificador (meu corpo; corpo do Senhor). Segunda: o corpo é mencionado, no v.29, sem relação ao cálice ou ao sangue.
À luz dos v.21 e v.22, pode-se constatar que a Ceia era um tipo de refeição particular usufruída pelos ricos em detrimento dos pobres. Alguns comiam opulentamente, enquanto outros não tinham o que comer. De acordo com o v.21, a ceia de Corinto não era a ‘Ceia do Senhor’ (v.20), mas uma ceia particular (idion deipnon, “própria ceia”, uma refeição muito particular). Assim, as divisões apontadas no v.18 certamente têm bases sociais. Fee indaga: “o que está por detrás de tudo isso? Como devemos entender o modo de os coríntios abusarem a mesa do Senhor?” (p.31). O autor recorre ao contexto histórico-cultural para responder essas questões e esclarecer o real sentido dessa passagem bíblica.
“Sabemos que as igrejas primitivas se reuniam em casas, e que muitas vezes as casas eram de estilo romano com os próprios cômodos formando um tipo de retângulo em derredor de um pátio aberto chamado átrio. Um dos cômodos chamado triclínio (reclinando-se em três lados de uma mesa) era a sala do jantar. Também sabemos, pela arqueologia de Corinto, que não existiam casas – ou pelo menos não foi descoberta nenhuma – em que mais de doze pessoas podiam ter se reclinado confortavelmente no triclínio. Se o triclínio estava sendo usado para essas refeições aludidas por Paulo, somente um grupo seleto podia ter sido admitido, e as demais pessoas teriam ficado lá fora, no átrio.” (p.31-32).
Fee salienta que a expressão “sua própria ceia” (v.21) pode estar relacionada com uma prática comum do mundo greco-romano, conhecida por textos de antigos escritores: o anfitrião selecionava os hóspedes mais importantes, e para eles servia uma refeição privilegiada, enquanto que outros hóspedes eram divididos em subcategorias, e para cada categoria era servida um tipo de refeição. Quanto mais importante era o hóspede, mais requintada era a comida. Fee cita dois escritores antigos (Marcial e Plínio, o velho), que fazem referência a essa prática.
Gordon D. Fee acredita que é algo desse tipo que é condenado por Paulo, em 1Co 11.29. O autor imagina que os ricos celebravam “sua própria ceia”, no triclínio, “ao passo que a maioria composta por certo de escravos ou de libertos pobres (cf. 1.26) eram basicamente excluídos da refeição dos outros e, portanto, eram excluídos da própria mesa do Senhor” (p.33).
Nesse contexto, não “discernir” o corpo significa não reconhecer o corpo de Cristo (a igreja) como um espaço igualitário, onde as diferenciações entre ricos e pobres inexistem. “Deixar de discernir assim o corpo e abusar dos de categoria social inferior é incorrer no juízo divino”, diz Fee (p.34).
O autor não ignora a referência ao sangue e ao corpo crucificado do Senhor. Isso porque o sangue de Jesus produz um efeito vertical e horizontal: aproxima-nos de Deus, verticalmente, e nos aproxima do próximo, horizontalmente.
Na verdade, o que Fee pretende demonstrar, a partir da interpretação de passagens de 1Corintios (aqui ressaltamos sua interpretação de 1Co 11.29), é que “a história é o primeiro contexto para a interpretação” (p.35). Ou seja, a interpretação precisa levar em conta o pano de fundo histórico-cultural do texto, e necessariamente precisa anteceder à aplicação.
Podemos discordar da interpretação de Gordon D. Fee sobre 1Co 11.29. Mas creio que todos nós concordamos no principal argumento do autor: para a correta interpretação e aplicação da Palavra de Deus em nossos dias, é preciso considerar seriamente as particularidades dos textos bíblicos em seus contextos históricos, literários e teológicos.
O texto de Gordon D. Fee e os demais artigos do livro Hermenêutica: uma abordagem multidisciplinar da leitura bíblica enriqueceram sobremaneira meus instrumentais hermenêuticos. Por isso, recomendo-os aos estimados colegas. Abaixo também alisto outras obras de hermenêutica bíblica, que também poderão contribuir para o aprimoramento de suas pregações.
Na paz de Cristo,
Pr Luciano R. Peterlevitz

BIBLIOGRAFIA DE HERMENÊUTICA BÍBLICA
BERKHOF, Louis. Princípios de interpretação bíblica.  Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1965.
CARSON, D.A. Os Perigos da Interpretação Bíblica. 2ª edição. São Paulo: Edições Vida Nova, 2001.
DYCK, Elmer (editor). Hermenêutica: uma abordagem multidisciplinar da leitura bíblica. São Paulo: Shedd Publicações, 2012.  
GRUDEM, Wayne; COLLINS, C. John; SCHREINER, Thomas R. Origem, confiabilidade e significado da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 2013.
HENRICHSEN, Walter A. Princípios de interpretação bíblica. 3ª edição.  São Paulo: Editora Mundo Cristão, 1986.  
KAISER, Walter C.; SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica Bíblica: Como ouvir a Palavra de Deus apesar dos ruídos de nossa época. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002.  
LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes: uma breve história da interpretação. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
LUND, E. & NELSON, P. C. Hermenêutica: Princípios de interpretação das Sagradas Escrituras. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Vida Nova, 2006.
OSBORNE, Grant R. A espiral hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009.
ZUCK, Roy B. A interpretação Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1994.



[1] Autor conhecido por outra obra publicada em português: Entendes o que lês? (Edições Vida Nova), em parceria com Douglas Stuart.
[2] Segundo Fee, em 1Co 3.16-17 o ‘santuário de Deus’ não é uma referência à destruição do corpo individual do cristão; antes, ‘santuário de Deus’ é a igreja como coletividade, que no contexto da epístola de 1Co estava sendo destruída pela sabedoria humana sobreposta à mensagem da cruz e pelas contentas de alguns membros de Corinto contra seus líderes – Paulo e Apolo).







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